quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A carta

Tenho um sonho que se repete. Nele os envelopes sempre chegam vazios. Por que? O que significa esse sonho? O que significam todos esses sonhos? Por que eles estão me influenciando? Nunca liguei pra essas coisas. Essa conversa de psicanalista, de significados. Nada disso. Não dou dinheiro pra essa corja. Um sexozinho e tudo está resolvido. Mas não tenho apetite mais. Logo eu, que sempre tive tudo que precisei. Meu pau é grande. Meus pais nunca se divorciaram. Meus avós morreram quando eu já estava grande. Sempre tirei boas notas. Passei no vestibular de primeira. Montei uma agência de publicidade com a migos que deu certo em apenas seis meses. Tenho troféu de futebol, de torneio de karatê, de maratona da matemática, boletim de faculdade recheado de “A”. Tenho dinheiro, casa, carro, computadores... Moro em São Paulo, em Higienópolis. Sabe o que significa morar na porra de Higienópolis? Não tenho mais o que querer. Fiz contrato milhonário, vamos ganhar um prêmio, namoro modelos gostosas de TV. Lanço modelos gostosas de TV. Elas querem me dar. Aquele quadrilzinho magro se debatendo em você... Aquele gemido agudo e superior. Agora não consigo nem trepar. Não consigo mais dormir. E quando durmo, o mesmo sonho. A mesma desgraça de sonho que está me deixando louco. Nuvenzinha, céu azul, brisa batendo na cara... É uma ilha não sei onde, com várias casinhas coloridas. Não quero. Não quero isso. Não consigo segurar minha mente. Que escroto. Uma das casas é minha. É uma vila de pescadores. O que diabos eu estou fazendo em uma vila de pescadores? Pescar o que? meu avô pescava. Eu não. O carteiro vem do horizonte, de barco, remando, sem suar, de roupinha amarela e chapéu azul, desce, caminha até minha caixa de correio, me olha sorrindo como se soubesse exatamente quem sou, não diz uma palavra, deposita a carta na caixa e vai embora como veio. Sinto medo dele. Só uso segurança porque a empresa hoje exige, mas tenho medo da merda de um carteiro magro de olhos claros da bosta do mundo dos sonhos. A carta é de alguém que espero muito. Nunca me apaixonei. Quer dizer, só uma vez, mas era um moleque. São notícias importantes. Tem muito amor em tudo. Meu coração salta. preciso daquilo, daquelas palavras que eu não sei quais são. preciso daquela solução. Não sei quem é essa pessoa no mundo real. Há muita ternura em tudo. Ternura, dá pra imaginar? Coisa de boiola, de viadinho, de fracassado. Vejo tudo da janela. Depois saio. Ele já foi embora. A visão ainda é a da janela, que no começo era em primeira pessoa. Pego a carta. Estou muito feliz. Ela estálacrada. Está escrita em rosa. Posso sentir o peso do papel. Parecem ser umas três páginas. Eu abro ali mesmo, ansioso, e está vazio. Desespero. Desespero. Está vazio. Não tem porra nenhuma lá dentro. Nada. Quem medo, meu deus, que medo. Um envelope vazio. Olho ao meu redor. Espalhados pelo chão, diversos envelopes vazios, rasgados, voam com o vento, boiam nas ondas ou são soterrados pela areia. Nunca consigo ler. Etou tão só. Os envelopes sempre estão vazios. Vazios. Do lado de dentro, somente as dobras brancas do papel. As casas estão destruídas, pela metade, podres, carcomidas pelo tempo. Eu estou sozinho em uma ilha deserta. Sabem que eu estou lá, sozinho. Porra! Sabem que eu estou lá sozinho. Eu recebo cartas. O carteiro não fala comigo, não me leva de volta, só fica trazendo essas cartas da pessoa amada que não conheço. De outro lugar do mundo. As correspondências vêm vazias. Onde diabos estão as cartas? Quero lê-las. È só o que peço. Uma vez alguém me disse que era impossível ler nos sonhos. Podíamos ate definir gurpos de letras de acordo com nosso subconsciente, mas não lemos. Minha cabeça não para, não se cala. Não quero acreditar. Ouço uma espécie de interferência de rádio, é um barulho vazio e silêncioso que não me deixa dormir. O que será que estaria escrito. Será que haveria como ler. Outro dia bati em um estágiário. Outro dia expulsei uma prostituta de luxo de uma festa aos berros e pontapés. Os acionistas me afastaram dos eventos. Bati meu carro. A porra de uma BMW. Bati em um viado de fusca. Vou ter que pagar o conserto de um fusca. De uma caralha de um fusquia fodido. Eu já fui o melhor. Não saio de casa há uma semana, não durmo há três dias, não tomo banho há quatro, fico só olhando pela janela. Não quero sair. O barulho do trânsito... O maldito barulho do trânsito. Não me traz respostas. Por que não me traz respostas? Por que? Por que? Por que? Não sei mais o que fazer. Só consigo pensar nos envelopes. Sonho com eles. Abro os olhos. É um pesadelo. É um pesadelo depois do outro. Mas não é um pesadelo, é um sonho. Não. É um pesadelo. Só pode ser. Estou ficando louco. Nunca liguei para sonhos. Quantas vezes vou ter que repetir isso para mim. Envelopes vazios. Envelopes vazios e um misterioso carteiro. Nada de buzina, de viagens, de cinema e restaurantes caros, nada de jogos internacionais, nada. Não quero mais nada. Não quero putas, não quero xoxotas, não quero nada. Queria apenas sonhar que o envelope estava cheio, e saber o que e quem me escreve. Queria poder dormir. Mas não posso. Os envelopes estão vazios. Se dormir, o carteiro vem entregá-los. Vazios estão os envelopes. Não durmo e não atendo a telefonemas. Não ouço música... Não ouço nada.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

El tango del jaguar

Caminho sobre os trilhos do trem. Como um mendigo. Como um indigente. Mas minhas vestes são razoavelmente novas. Não estou tão sujo. Mas essa é a atitude. Desci do vagão do trem, e agora, guiado pelo caminho de aço, caminho em meio a mata, sob a luz das estrelas. Algo que nunca fiz antes. Conto tudo em pensamento para meus parentes, que vão se horrorizar, que nunca entenderão. Sou novo no ramo de viagens improvisadas. Como um qualquer, um revolucionário, um louco andarilho, um poeta medieval, caminho sobre os trilhos do trem. Sou um felino de grande porte, um pássaro carniceiro, um caçador alado, um espírito livre. Eu mesmo sou a assombração. Sou a terra seca, vermelha, ou molhada, marrom, grudando na sola dos sapatos. Vivo nos anos 70, 80, 90, 00, e tenho apenas 20, apenas 30 anos. Não conheço a vida.

O vento frio começa a fustigar a nossa pele. Meu amigo segue em silêncio um pouco mais atrás. Guarda seus pensamentos em direção silenciosa. Faço de conta que posso ouvi-lo, enquanto presto atenção no som dos seus passos. Ainda não sei quando vou parar, mas sei aonde vou parar. Posso ouvir a respiração dele. Estamos concentrados no ato de caminhar, como vagabundos iluminados. Meus pés doem. Minha garganta está seca, mas meu estômago está cheio. Eu poderia ser um fugitivo. Poderia ser encontrado por um ladrão, por alguém de má índole. Perdido na mata, podia ser vítima de animais e assombrações, de doenças e loucuras. Poderia assassinar meu companheiro de viagem, ou ser assassinado por ele. A única coisa que nos separa disso é o que nos faz acreditar que estamos separados disso.

Vindos de Brasília, semi-burgueses, cansados, com dinheiro no banco e sem nada no bolso ou nas mãos, questionadores, levianos, puristas, turistas, solitários, seguimos. Caminho sobre os trilhos do trem e penso em meus familiares, em minha infância, em meu último emprego, no meu último chefe. Tenho vontade de matá-lo. Penso em minha namorada e nas brincadeiras de infância. Sempre fui muito imaginativo. Sou um soldado perdido. Eu e meu camarada nos perdemos de nosso batalhão em um ataque. Nossa missão é sobreviver. Estamos em um país inimigo, cansados, com medo, mas valentes e patriotas. As selvas vietnamitas de Minas Gerais cortadas pelo trilho do trem, são nosso único escudo, e ao mesmo tempo nos desnudam. Unidos, seguimos.

Preciso mandar um e-mail quando chegar à próxima cidade. A bateria do meu celular acabou. Preciso de uma cerveja gelada, de um violão, de música, de mulheres. Preciso de um bloco de notas e uma caneta. Penso. Penso, logo caminho. Penso nela, nua, sobre mim, devagarzinho, ou dominada, vítima, com as pernas presas. Penso em outras, sorrio, não penso, sou levado a pensar. Um produto inócuo do meio. Nada mais. Vil, invejoso, consumista, egocêntrico, impulsivo e temerário. Nada mais. Valente, filósofo, escritor, determinado, esperançoso e idealista, nada mais. Espanhol, latino-americano, brasileiro, peruano, caucasiano, cristão, judeu, budista, muçulmano. Nada mais. Aqui, esquecido por Deus, sob os olhares atentos das constelações de novembro do hemisfério sul, não sou ninguém, tal qual Odisseu. E assim como o ardiloso grego navegava, guardadas as devidas proporções, sobre os trilhos do trem, caminho.

Gosto da palavra “inócuo”. Também gosto da palavra “determinação”. Gosto de várias letras também. Em especial o “M”, de “Maria”, o “J”, que tem pingo, mas não é “i”, e o “G”, que é a primeira letra do meu nome. Meu andar está trôpego. Meus pés se jogam para frente e meu corpo para as laterais, em zigue-zage. Meus olhos pesam. Meu amigo caminha como eu. Um pouco pior. Ainda falta muito. Podem ser dias. Espero que não. Ainda é o primeiro dia de caminhada. A mochila já está pesada. Devem ser 23h. Não. São 23h45. Ainda é cedo, mas estamos cansados. Já chega. Vou parar. Vamos armar o saco de dormir ali. Tem que ver se não tem cobra. Se um trem passar de madrugada, vai nos acordar. Que se dane. Aqui. Ainda tem aquele suco? Me dá um pouquinho. Tenho miojo e rizoto. Vamos de rizoto. É, isso é engraçado. Não, acho que não. O Cruzeiro não chega lá. Perdemos. Espero que as frutas não apodreçam. Arruma o fogaréu. Vou preparar uma fogueirinha também. Também acho. Que a próxima cidade não esteja longe. Da próxima vez, só de carro. Nada de carona clandestina. Ainda é cedo pra falar. Muito bom. Você vai ligar para ela? Vou também. É uma situação delicada. É engraçado. Meu pai veio da Ucrânia, mas a mãe dele é brasileira. Jã morreu. Não Meu outro avô é que é da sérvia. Não sei. Sou um típico jovem de Brasilia. Foi aquele árabe lá. Comédia. Isso está gostoso. Vamos comprar mais. Quando chegar no Sul eu vejo. Não sei se quero ir à Argentina. Vamos ver até lá. É. Isso aí. É só se ajeitar. Afonso? Já está dormindo. É verdade. Boa noite...