terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Especial de Natal Casa das Mentiras

O homem de terno marrom avançou em meio às pessoas da feira, com passadas fortes e firmes. Passou pelos melões, pelos pimentões, pelas cenouras, por uma velha com a sacola enorme, pela mãe com o filho, pelo namorado com a namorada, pelo tomate, pelas mangas, pelo casal de velhinhos, pela figura de burka, pelo rabino, pelo judeu, pelo homem negro de roupas colorida e pelos americanos. Ele movia todo o seu corpo para frente com o olhar fixo e uma determinação elevada, para que seu espírito não o traísse pelo medo. Puxou o homem de terno cinza, que sorriu por uns instantes ao vê-lo, e socou-lhe a face.
Antes que a vítima pudesse se dar conta do que estava acontecendo, o agressor marrom socou-lhe novamente a face e o derrubou no chão. As pessoas se amontoaram. Uma mulher gritou. Homens se aproximaram para apartar, mas não conseguiram deter aqueles braços contrariados e fortes, que pareciam, incrivelmente, agir por dever. E, tomado por uma ira, o homem de terno marrom sentou sobre o homem de terno cinza e deu-lhe mais três tapas, até que o outro finalmente desse conta do que estava acontecendo e elegantemente afastasse o brutamontes para longe de si sem muita dificuldade.
O homem de terno marrom estava aos prantos, enquanto o agredido recompunha-se sem uma gota de raiva no olho, embora tremesse um pouco e tivesse sangue nos lábios e os olhos bem abertos. Depois que estavam de pé, frente a frente, o homem de terno cinza finalmente respirou e começou a falar enérgico. As pessoas que se detiveram por alguns momentos enquanto brigavam, voltaram a caminhar comentando o ocorrido sem entender e fazendo especulações diversas. Curiosos, atentos e pessoas bem e mal intencionadas seguiram seus caminhos.

- Por que me bates? Não tínhamos conversado? Não estávamos resolvidos? Achei que não te devesse mais nada! Mas agora, aqui, em praça pública, me humilhando na frente de todos esses desconhecidos, você me soca a face!? O que queres que eu pense? Já fiz tudo que podia ser feito! Já te pedi desculpas!
- Não se trata mais de você. Não te bato por ódio, e nem por rancor!
- Recomponha-se! Pare de chorar. Não há necessidade disso. Se me feres, quem deveria se verter em lágrimas sou eu, e não tu. No entanto não choro, então também não tens motivo.
- Choro porque sofro em te infringir dor. Por que ao te ferir me machuco ainda mais.
- Não entendo então. Já te pedi perdão de joelhos! Se sofres tanto em me agredir, se isso não te trás nenhum alívio, porque me esbofeteaste?
- Você sempre foi mais forte! Mesmo eu sendo maior, você sempre foi melhor de briga que eu! E mais ainda, sua força moral sempre esteve acima da minha, muito mais elevada. Mesmo que você tenha me ferido de um jeito que nenhuma dor física consiga me atingir, meu amigo, meu irmão, continuo sentindo essa força espiritual inspiradora emanar de você e me guiar pelos caminhos do mundo como um mestre... Você sempre esteve acima para mim...
- Não compreendo. Aonde queres chegar? Queres novamente que eu te peça perdão por tudo que fiz? Se quiseres, eu peço, aqui, de joelhos, em frente a todas essas pessoas. Não me custa. Não é demais para mim. Somos irmãos. Teu perdão vale mais que meu orgulho. Não temos o mesmo pai ou a mesma mãe, sou rico e tu és pobre, mas eu te amo e nem Allah pode mudar isso. Eu te peço: perdão, meu irmão. Pequei contra ti e contra meu espírito. Te peço perdão.
- Não é isso. Não quero que me peças perdão novamente. Não te humilhes. Levante-se, por favor...
- O que queres então? Porque me esbofeteaste?
- Precisava... Precisava ter certeza...
- Certeza de que?
- Certeza de que realmente lhe perdoava, com o meu coração, com o meu espírito, e que não fazia isso por covardia ou impelido por tua grandeza, por interesse pessoal.
- Irmão!
- Por que me olhas assim? Estás a chorar tu agora?
- É que agora me sinto realmente perdoado. Compreendo a essência e o valor dessa palavra como nunca. Não há mais arrependimento, porque vós me perdoastes. Muito obrigado, irmão! Muito obrigado. Allah foi muito generoso de pô-lo em meu caminho. Tu és um homem superior. Toda a dor que me causaste agora a pouco tornou-se em redenção!
- Pare de chorar tu agora, que estás a me envergonhar. Dá cá um abraço, meu irmão querido! Não vamos brigar mais.
- A partir de hoje este dia será considerado feriado em minha família, e trocaremos presentes em tua homenagem! Sumaya vai preparar um belo jantar hoje. Poderias passar lá em casa para nos saudar com tua presença, para comemorarmos esta data especial.
- Claro...
- Acreditas que...
- Sim, com certeza...
- ...
- ...
- ...

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Apresentamos o Especial de Natal Casa das Mentiras!. Em breve voltaremos com mais sobre a saga O Caminho das Folhas, e a história de Thomas, Ilka e Rafaela. Feliz Natal a todos!!!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O caminho das folhas - A festa (Cap. 2)

Cheiro de expectativa no ar. 16 de abril. Tudo decorado. Balões vermelhos, verdes e brancos. As mesmas cores no xadrez das roupas dos garçons. O estúdio de paredes roxo-cinzento estava todo decorado, igual a um salão de festas. As cortinas estavam fechadas e o som desligado. Os convidados eram servidos em suas mesas. João afinava uma guitarra no volume mais baixo. Tom ia chegar a qualquer momento. Era uma surpresa. Uma grande surpresa. Ele tinha 27, mas não era seu aniversário. Rafaela corria para lá e para cá. O interfone tocou. O porteiro avisou que o dono da casa estava subindo. Todos apagaram as luzes. A menina preparou o próprio triunfo, que era comemorar o triunfo do irmão. Silêncio.
Rafaela estava com a razão. Ele fora aprovado com mérito. Foram quatro anos de estudo. As coisas deram certo rápido demais para ele. Era agora mestre em fotografia e comunicação visual pela Universidade de Brasília. Ele parou o carro, caminhou contente pelo piloti, ansiando chegar em casa e contar tudo para a irmã. Esperava um cafezinho, e depois trabalhar nas fotos que o GDF encomendara para a festa de gala de aniversário de Brasília. Um silêncio cairia muito bem. O porteiro estava estranho aquele dia. O fotógrafo entrou na portaria, entrou no elevador e parou no corredor do primeiro andar. A luz se acendeu. As paredes branco-gelo e a samambaia de mentira em um grande vaso o cumprimentaram.
Estouros, cornetas, confetes e serpentinas no ar. Thomas abrira a porta. Um imenso grito de surpresa o deixou paralisado. Os Paralamas começaram a tocar Vital e Sua Moto. Rafaela pulou de chapéu, língua de sogra, colar de flores havaiano e nariz de palhaço em sua frente. Estava com aquele sorriso que era um sorriso sempre ideal, com convinhas, maroto, engraçadinho. Ele fora pego. Não tinha escapatória, mas estava feliz. Aquela diabinha. A levantou no colo e girou. Ela gritou. Ele a soltou. Muitos vieram lhe dar os parabéns. Abraçou João, seu eterno irmão de aventuras, cumprimentou os colegas de faculdade da irmã, inclusive o tal Lucas. Sorriu para todos e atendeu o telefonema dos tios do Rio Grande do Sul.
Muita lasanha, vinho tinto, macarronada e profiterolis para a sobremesa. Belle and Sebastian, Franz Ferdinand, Gal Costa, Caetano Veloso, Legião Urbana, Pink Floyd e Beatles. O volume foi abaixando. O número de pessoas foi diminuindo. Os carros na rua foram desaparecendo. A euforia foi chegando ao fim. Thomas beijava Graziela. Se atracavam. Os garçons estavam exaustos quando finalmente se foram. Os visinhos já haviam reclamado. A casa pareceu mais deserta que o habitual. Havia muito lixo. A garota beijoqueira da agência de publicidade ficou por último com João e Cálida para ajudar os irmãos. Depois ficaram sentados na cozinha, tomaram café e falaram sobre a vida. Tom contou como foi sua banca. Como desbancou.
Passava das 3h. Rafa abraçou o irmão com força. Ele sorriu. Estava com olheiras, esgotado. Ela também. Os planos de trabalhar naquela noite foram por água abaixo. O som alto ainda reverberava em ecos, latejando na cabeça dos cinco. Grazi, então, foi embora. João abraçou o amigo novamente. Cálida se despediu. Eles insistiram para o casal ficar. A caçula sorridente trancou a porta quando enfim estavam sós. Tudo voltara ao normal. Mais ou menos. Era uma nova fase para o mais velho. Mas ainda eram os mesmos. Ele levou o porta-retratos do quarto para a cozinha, e trocou a foto da geladeira, com Rafaela de palhaça, pela foto dos irmãos abraçados na creperia. Nela estava escrito: “Garotos perdidos! Eternamente unidos”.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O caminho das folhas - Queda livre (Cap. 1)

Era 13 de setembro. Tom abriu os olhos de manhã. Estava com o rosto inchado. Sentia ressaca. Sua barba castanha estava desgrenhada na face. Sentiu um mormaço na boca. Procurou por Rafaela, mas ela não estava em casa. As janelas estavam todas abertas. Uma luz clara, de dia ensolarado, entrava por todos os lados. Ele levantou-se e caminhou de cueca e camisa sem manga branca pela casa. Coçou a bunda e fungou com o nariz. Tossiu e pigarreou. Na cozinha, um recado em cima da mesa. Ele levantou e aproximou o papel dos olhos. Estava sem lentes. “Fui ao Poço Azul com uns amigos, não me espere para o almoço. PS: A Ilka, do photo, te ligou. Disse que você pode ir buscar os quadros. Peguei o Ka. Beijos, mano”. Ele olhou o relógio de pingüim sobre a geladeira. Eram 9h20 e pouco. Pigarreou novamente e foi vestir-se. Era uma bela sexta-feira.
A agenda de Tom estava vazia. Ele gostava de reservar uma sexta por mês, pelo menos, para ficar com amigos, beber e olhar a cidade. Alguém tocou a campainha. Ele gritou que esperassem. Cuspiu a pasta na pia, bochechou, limpou a barba e os olhos e enxugou o rosto rapidamente, vestiu as calças desajeitadamente, e ainda descalço e com a blusa cavada branca, correu para abrir a porta sem pentear os cabelos. Quem seria? Quarto, corretor, cozinha, estúdio fotográfico, porta da rua. Era um policial militar. Ele abriu a porta e sorriu. O homem tinha um olhar estranho. Tom ficou sério. Por um momento, não era um policial, mas um homem fardado, e carregava consigo um fardo sobre a farda e o olhar de quem ia passá-lo adiante. O medo perpassou a garganta do jovem fotógrafo. Ele tossiu breve e contido. Tudo parecia eternamente lento, embora segundos se passassem. Eles se encaravam. Ele convidou o homem para entrar, mas a princípio ele não aceitou. O homem tinha um papel em mãos, e leu alguma coisa antes de falar...
- Senhor, o senhor é Thomas Braga?
- Algum problema?
- O senhor é irmão de Rafaela Stacciarine Braga?
- Rafaela? Sim. Por quê? Alguma coisa errada com ela? Ela está bem?
Tom sentiu o coração disparar. O que um policial estaria fazendo em sua casa pouco antes das 10h da manhã para falar sobre Rafaela? Ele não queria escutar o homem de cinza, queria apenas vê-la. Tentou não pensar no pior. O sangue subiu para sua cabeça. Seus olhos ficaram fixos no homem da lei. Ele esperou que ao pessoa diante dele dissesse mais alguma coisa.
- Senhor, sinto dizer, mas ela sofreu um grave acidente de carro, na estrada que dá acesso a Brazlândia. Não senhor. Sinto muito. Morreu antes mesmo do socorro chegar ao local. Acalme-se. Senhor Thomas, por favor apóie-se no meu braço. Isso. Vamos entrar. Venha comigo. Me guie pela casa. Procure respirar. Onde é a cozinha? Isso. Isso mesmo. Sente-se nessa cadeira. Vou pegar uma água para o senhor. Mantenha a cabeça abaixada, assim, sua pressão baixou muito. Quer que eu ligue para alguém? Não pode dirigir assim. O senhor tem alguém para te acompanhar no IML? O senhor terá de ir ao IML. Não é bom que o senhor dirija nesse estado. Quer que o leve?
- Não. Liga pra alguém. É melhor. Liga... Liga nesse número – aí na geladeira.
- Um momento senhor. Onde está o telefone?
- No estúdio, perto da porta.
- Só um instante. Já volto. Tome essa água. Quer que chame um médico?
- Não.
- Um momento. Alô! Senhor João? Aqui é o cabo Fontoura da Polícia Militar. Sim. Isso mesmo. Ricardo Fontoura. Estou na casa do senhor Thomas. Não, ele não está bem. Não. Ele perdeu um parente. Disse que eu poderia te ligar. Para o senhor vir vê-lo. Já está a caminho? Vou avisar. Sim. Por nada. Ok. Pode deixar. Senhor Thomas? O senhor está melhor? Tem certeza de que não quer que eu chame um médico? O João já está a caminho. Esse é meu número. Se precisar, pode ligar. Posso esperar por ele, se preferir...
- Não. Não quero. Vá embora, por favor. Muito obrigado. Preciso entender o que está acontecendo. Vá embora, por favor. Eu quero ficar só. Eu sei. Não, não vou fazer nada. Me dê licença. Saia da minha casa. Eu vou ao IML. Vou esperar o João. Já tenho seu celular. Muito obrigado. Agora, vá embora, por favor. Por favor.O cabo não foi realmente embora. Ficou na porta da casa de Thomas, com ouvidos acurados, escutando barulhos, com medo de que ele fizesse alguma besteira. Tom, por sua vez, não se importou de que o homem ficasse em sua porta. Nem o viu, para falar a verdade. Nem se lembrou dele depois de encostar a porta, que era de ferro, pesada, de um azul bem escuro, com um olho mágico no meio, e sobre o olho, do lado de fora, o número do apartamento: 111. Não sentia vontade de chorar. É como se não entendesse o que estava acontecendo. Não tinha alma, não tinha sentimentos. Estava pálido, vazio, sentia-se tonto e desorientado, e uma dor sem tamanho fazia com que suas energias se esvaíssem por todos os poros de seu corpo como uma torneira aberta que desperdiça água. Suava frio. Ele voltou para a cozinha e sentou-se novamente. O copo de água, ainda pela metade, estava inerte sobre a toalha de plástico amarelo que Rafaela tinha comprado. As canecas engraçadas da menina estavam dependuradas na parede, como olhos que o encaravam. O copo ainda sujo de leite estava sobre a pia, como um sorriso amarelo e sem jeito, pois ela nunca lavava louça pela manhã. A casa era intocada. Tudo transpirava a alegria jovial de Rafaela. Eles só tinham um ao outro. Ele foi entendendo aquilo. A notícia foi se misturando à realidade. Se misturando. Sua cabeça girava mais e mais. Rafaela estava no silêncio, na solidão, na ausência, em um recado que acidentalmente fora parar no chão, na foto dos garotos perdidos, no nariz de palhaço, no ladrilho laranja, nas roupas espalhadas no quarto de empregada, no porta-retratos, mas subitamente não estava mais ali. Ele deu um grito de agonia, liberando todo seu inconformismo, cerrando os punhos, se contorcendo. Bateu, em um espasmo violento, no copo, que se quebrou, cortando-lhe as costas da mão. O vidro e a água se espalharam pela mesa e pelo chão. Um pouco de sangue gotejou. Ele apoiou a cabeça nas mãos e os braços nas pernas e chorou como uma criança, e caiu no chão, em decúbito dorsal esquerdo, e encolheu-se em posição fetal, socando o piso, com o estômago pegando fogo, com as veias na fronte a ponto de explodirem, hora sussurrando, hora gritando, com lágrimas intermináveis e muco sujando seu rosto, sua barba, seus cabelos, na esperança que Deus ouvisse suas súplicas, seus palavrões, sua revolta, que Rafaela entrasse pela porta sorridente e prática, que fosse mentira, que fosse um trote ou um pesadelo, até a última réstia de força, afogado em agonia, e apenas sussurrava sonolento quando João, com seu casaco de flanela, também em prantos, o ergueu e o levou para o quarto sem dizer uma palavra. Num ato sereno em meio à tragédia, os amigos se arrumaram em um silêncio agônico, e dirigiram pelas vielas de Brasília rumo ao Instituto de Medicina Legal. Na Rádio Notícias, uma repórter falava do acidente que deixou dois jovens em coma, em estado grave, e fez uma vítima fatal, a estudante de arquitetura do Centro Universitário de Brasília, Rafaela Stacciarine Braga, de 19 anos. John desligou o aparelho antes que a matéria terminasse.