quarta-feira, 23 de abril de 2008

El Condor Pasa

Corujas cruzavam alto nos céus, procurando as calhas e tocas em seus apartamentos, sobre os prédios retos e baixos da cidade. Muitas histórias, já em forma de sombra, em forma de fantasma, passadas a muito, se repetiam constantemente nas avenidas organizadas da cidade. Nas quadras verdes da W3 Sul, namoradas, amigos, futebol de asfalto, bete, e outras diversões brincavam de se repetir na calada da noite ou no vazio do dia. Crianças que foram pais e pais de pais, ainda gritavam sob os pilotis, e seus filhos, e os filhos de seus filhos. Gerações corriam entre si, sem se tocarem no entanto, em camadas de formas etéreas. Apartamentos, trancados ou não, sussurravam as músicas e programas de TV que passaram por ali.

Ao longe, uma banda punk reverberava na Colina, e seu fundador já nem existia mais. E os meninos mais novos, tentando repetir os feitos de seus antepassados do rock, também tocavam e cantavam no Setor Leste, no Elefante Branco, no Espaço Cultural da 508, e no extinto Gran Circo Lar, e depois outros tentavam repetir, e outros, em um constante eco. Meninos e meninas ricos zanzavam como zumbis fantasmagóricos, a esmo, pelo Gilberto Salomão, sem existirem. Feiras de artesanato sombrias eram visitadas pelo vento frio, seco e ululante. A ladainha artística e política ecoava distante, como uma música em um volume muito baixo, em bares de balcões abandonados e cadeiras sujas e solitárias.

Ainda se viam as pombas passeando entre o Conic e o Conjunto Nacional, e o chão sujo da rodoviária continuou sendo o caminho por onde as edições passadas dos jornais da cidade corriam ao vento. A feira da Torre, montada era o lar do cheiro de madeira e trabalho que já existiram um dia. O teatro, mais assustador que nunca, continuava imponente em seu formato piramidal, com um museu sem exposição e uma biblioteca sem livros para acompanhá-lo. Carros jaziam abandonados nos Eixos. Quando muito, um disparava o alarme, se ainda houvesse alguma carga na bateria, e exauria a energia do veículo. E todos os vidros da catedral estavam quebrados, e os sinos, enferrujados, se esfarelavam, fustigados pela ação do incorruptível tempo. Os ratos, gatos, cães, capivaras e macacos eram agora os donos desses lugares na cidade assombrada. Os matagais eram tomados de serpente e felinos selvagens caçavam nas entre e super-quadras.

Os ônibus vazios, com portas e janelas abertas, cheios de poças de água, bolsas, guarda-chuvas e casacos esquecidos, pareciam fazer do silêncio seu ronco matinal, hino diário de quem ia para o trabalho de condução. Os trens do metrô, à mercê dos trilhos inutilizados, também com suas portas abertas, pareciam repetir, segundo sobre segundo, aquela sirene estridente que avisa que quem ainda está na fila do cartão terá que esperar o próximo. E as estações, escuras e vazias, são receptáculos de poltergeists e criaturas peçonhentas. Lugares tristes sem seus varredores e seguranças.

Tudo tomou uma forma densa, envelhecida, tombada, que, acima de qualquer coisa, guardava bilhões de histórias da raça humana. Desde festas de natal à trágicos acidentes de carro. De casamentos a viuvez. Partidas e chegadas no Aeroporto e na Rodoferroviária, nascimentos no HRAN e enterros no Campo da Esperança. Amizades, assassinatos, atrocidades e altruísmos. O que der para imaginar. O que aqueles garçom, que eram donos de um restaurante de nome árabe, diriam sobre a situação? As escolas públicas, o prédio da 107 Sul, e os adolescentes que se beijavam, o que pensariam? Os vestibulandos, os calouros e os veteranos da UnB, ou do CEUB, os freqüentadores do Clube da Vizinhança e do, então, estático e nuclear, Parque Piton, o que fariam se vissem Brasília assim? Mas não estavam mais lá. Apenas seus pertences. Conservadas, porém sujas, peças arqueológicas. Roupas de malha, marcas, emblemas, toalhas, calções de banho, carros vazios e os restos mortais dos entes queridos que partiram primeiro, no cemitério.

Saudades dos meninos abastados e das meninas grávidas. Todos haviam desaparecido, mas como? Não havia mais o som dos carros correndo acima da velocidade permitida nos Eixinhos, a noite, para quem dormia nos prédios escutar. A gritaria da criançada que chegava da escola no final da tarde, a querida e cultivada frieza distante entre visinhos também não se repetia de fato. Nada disso existia. Ainda era a cidade, mas sem homens. A noite, os postes e os semáforos acendiam e piscavam tristes, esperando que a moçada invadisse os bares para festejar, a despeito de qualquer lei que o governo criasse em nome das associações de moradores amargos.

Nem você leitor poderá saber disso, pois já está desaparecendo, e agora, não é mais que um fantasma que se debruça sobre uma maquinaria inútil, repetindo apenas, os gestos que fez em vida, acreditando piamente que está aí, sem, no entanto, estar. E no final de todas as ruas, onde todas as pistas se encontram, o Congresso e a Praça dos Três Poderes parecem sorrir e dizer, feliz 348 anos, Brasília.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Cosmogonia de fundo de quintal

Isabelle pensava no universo enquanto retirava as roupas do varal. Enquanto guardava sutiãs e calcinhas imaginava (como bióloga que era) que a natureza nunca fez nada que não fosse objetivo, prático e funcional. O que se tornava obsoleto, a evolução devorava. Foi assim com parte de corpos e até com espécies inteiras. As indagações de Jonas a levaram a refletir sobre isso. Ele era um pensador. Realmente não é necessário algum diploma para entrar em contato com a Criação.

O rapaz desenhava as plantas do jardim como se ilustrasse um antigo livro de botânica. Era o seu hobby. Jonas era escritor, formado em jornalismo e estudante do que chamava de "tudo". Enquanto agachava desajeitado, com a prancheta em mãos e os olhares atentos, provocava a noiva. - Por que pensamos? Por que nos perguntamos quem somos e de onde viemos? Que traços evolutivos são esses que nos levam a perceber detalhes muito além dos meramente físicos? - Isabelle ouvia em silencio e com atenção. Com seu noivo era mais fácil pensar nessas coisas.

Para Isabelle, Jonas estava certo. Ele havia encontrado o mistério que anos de laboratório não revelam. A capacidade de amar o conhecimento, a faculdade de filosofar não só não foi eliminada pela mãe de todas as coisas,como foi aperfeiçoado no correr das eras. Uma joaninha tem pintinhas pretas, um pássaro, plumas amarelas, um lagarto, língua comprida, um homem, imaginação. - É verdade Jonas. Damos significados a tudo. Se não o fazemos conscientemente, o fazemos inconscientes. É a nossa natureza.

Jonas terminou de detalhar um tomate e sentou-se sobre folhas secas deixando a prancheta de lado. Isabelle terminou de recolher as roupas e as guardou numa bacia em cima de uma mureta que dava passagem ao quintal. Uma aranha caranguejeira atravessou furtivamente o chão da área de serviço. Ele levantou uma pedra e miríades de insetos deslizaram sobre o chão para todos os lados. Ela passou a mão sobre a barriga que amadurecia um filhote ainda celular, que seria num dado momento uma menina.

O homem concentrou-se num tatu-bola que parece não ter percebido o apocalipse de seu universo. Isabelle soltou Kali, a labrador caramelo da casa, e a cadela correu feliz pelo jardim,fazendo o ragnarok das aves e de outros pequenos animais que visitavam o estabelecimento. A aranha entrou debaixo da máquina de lavar roupas. As nuvens encobriram o céu e uma réstia de sol feneceu sobre os traços no papel. - Vai chover querido. Vamos para dentro. - ela disse virando as costas. Ele enfiou o lápis no bolso da bermuda e a seguiu.

Isabelle entrou sorrindo, pensando em qual seria o seu propósito no universo. Jonas entrou pensando em qual seria a relação entre a forma do tatu-bolinha e dos planetas que vagueiam pelo espaço. Kali latiu e passou correndo pelo casal, entrando na casa. A chuva apressou suas gotas e engrossou seu caldo. Eles pregaram o desenho junto com os outros na parede da sala, um mural artístico quase infantil, e foram fazer os trabalhos que tinham levado para casa. O tema da próxima semana seria gestação.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Aquário

Leleo e Lili eram um casal radical. Ele fazia engenharia, e ela era recepcionista. Ele era negro, ela era loira, e nenhum dos dois ligava muito para o que a sociedade diz sobre ter e ser, e sobre viver como “manda o figurino” do teatro da vida moderna. Não eram hippies, não se apegavam a partidos políticos e evitavam grupinhos. A ânsia que aproximava a ambos era a vontade de fazer de suas vidas um benefício pra a existência de todos os planetas, o que não é possível quando se fica preso na politicagem matuta e infantil do reitor da universidade ou do presidente do Brasil.

O casal era feliz, e se, para isso, como um excelente formando em mecânica, ele precisasse abrir uma pequena oficina suja de graxa no interior mais interior possível de Pernambuco, ele abriria. Se, para permanecerem juntos ela precisasse de se formar em medicina em Oxford ou qualquer outra dessas “grandes” universidades repugnantes, ela se formaria. Que bom, no entanto, que não seria preciso. Poderiam, até mesmo, viver rodando o país, fazendo uso de seus pequenos conhecimentos para levar a vida. Quem, afinal, disse que posses, que casa e cachorro, piscina e meninada são indispensáveis para a felicidade? E não eram pessoas alheias a tudo, embora pudessem parecer. Lili e Leleu eram bem mais atentos que a maioria. Isso porque se ligavam à outros detalhes, realmente fundamentais, que eu ou você não somos capazes de ver, pois só sabemos querer e reclamar.

Lili, Eliza, mais precisamente, não havia terminado o segundo grau. E daí? E daí, nada. Não havia terminado e pronto. Qual era o problema? Isso não fazia dela uma pessoa menor. Muitos, no entanto, a viam dessa forma, como um cargo, como uma função, como uma maquinaria barulhenta que obedecia às ordens dos outros. Como o robô dos Jetsons que ficava na renomada “bal, bla, bla” empresa fulana-de-tal, e que era “claro”, facilmente substituível. Uma boa dose de auto-conhecimento, amor e força de vontade, no entanto, deixam na lama qualquer diploma. No mais, ela já preparava tudo para o dia em que iam ficar realmente juntos, para sempre juntos. Sonhava com o dia que iria trançar suas madeixas loiras no peito negro do amado, cansados no final do dia, felizes e satisfeitos com o simples fato de terem, mais uma vez, visto o sol nascer, ouvido o cantar dos pássaros e o latir dos cães e dado muito duro em suas funções.

Leleu, isto é, Leandro pensava como ela. Gostava muito do curso, mas o fazia só porque entender as variáveis dos seres máquinas e seus inúmeros elementais e seres viventes do mundo da ignição, das roldanas, porcas, manivelas e alavancas. Era como se fizesse, por exemplo, biologia, só que com as máquinas. No fundo, para ele, era a mesmíssima coisa. E era maravilhoso, também, ficar deitado no telhado com sua garota, olhando para o céu, sorrindo para aquele imenso moto-contínuo perfeito que girava psicologicamente sobre a cabeça dos amantes, dando a impressão da existência dos dias e das noites. Era um filósofo, e ela, a menina simples que atendia os telefonemas e usava malhas nas horas de folga, sua guia mis experiente, embora ela não pensasse nisso.

As famílias de ambos também eram curiosamente complicadas. A mãe de Leleu achava que ele merecia coisa melhor que uma recepcionista, enquanto o pai dele se preocupava constantemente com as ânsias de vida do garoto, com suas tão peculiares ambições, e se lamentava pelo jovem não pensar de um modo “correto”, como ele. Enquanto isso, a mãe de Lili acreditava que ela devia agarrar aquele homem e não soltar mais, pois era sua oportunidade de vida. O pai não se importava muito, afinal, o menino tinha dinheiro. E no fim, era bem difícil dizer com precisão quem era pior, afinal, bem no fundo, por trás de um absurdo de preconceitos que nem sonhamos, pois somos dotados deles e os vemos como virtudes, eles apenas amavam suas crianças e queriam vê-las crescer bem. Uma situação naturalmente aceita, já que se tratava da prole de ambas as famílias. Para a mãe, a fêmea, afinal, tinha o macho que a protegia, e o ancestral, no caso de Leandro, via seu descendente seguir passos diferentes, e temia não sabia se a linhagem seria mantida com sua devida pompa, afinal, a força hoje é o ter mais até que o poder. Enfim, era tudo amor, mas equilibrado em uma tênue linha de instintos de procriação e perpetuação da espécie que são indignos para os seres humanos, mas que, afinal de contas, ninguém liga.

E foi assim que um dia partiram. Ele não retirou o diploma, não pensou nisso e nem soube por que. Apenas o fez. Concluiu o curso e pronto, deram as mãos, compraram um carro para lá de acabado, consertaram, reformaram e estilizaram e escreveram atrás “recém-nascidos”, se é que me entendem, amarraram latinhas irritantes, e foram embora buzinando, com alguns trocados no bolso e muita alegria no coração. Onde gostassem, parariam para ficar, mas tinham um roteiro que ninguém soube. O mundo podia acabar, a terra podia tremer, o que conhecemos hoje como sistema poderia finalmente ruir, e nos poupar mais alguns séculos de absurdos sofrimentos desnecessários, afinal, quando nada for como acreditamos, acima de tudo, o ser humano continuará sendo ser humano, e isso é o que importa.

E os netos de Leleu e Lili, se eles vierem, vestindo roupas simples, com famílias pequenas e organizadas, em uma amável comunidade local de onde eu não sei, darão continuidade à perpetuação do amor e da condição humana, e olharam par o céu com aquela deliciosa sensação de reminiscência, de que se está contemplando algo que já era belo há 1000 vidas, e pensaram no homem, na inteligência do universo e no seu reflexo divino em nossos trabalhos, e a nova era será de amor e paz depois que as águas de Aquário passarem.

sábado, 5 de abril de 2008

Até o topo da montanha...

Os pés de Isadora eram mesmo lindos. Unhas vermelhas, branquinhos, pequeninos, passeando pelas pedras e pela relva naquelas sandálias marrons. Até pareciam deixar um rastro de fadas, ou de algo vivo, mas intangível, que era ao mesmo tempo belo e misterioso. Os tortuosos caminhos da montanha e os dias de caminhada não abalavam a docilidade dos passos da escaladora. Pareciam nunca se cansar aqueles pés. Chegariam ao topo voando, ou dançando. Não importava, nem havia dúvida.

Já Victor, pisava firme, hora na frente de Isadora, hora atrás, sempre atento à menina, com um resistente tênis de caminhadas, se descalçando para subir em árvores e nadar em rios. Eram pés não muito grandes, com a cor escura dos indianos, pois Victor tinha mãe indiana. Eram determinados, guerreiros, de um verdadeiro Kshatria. Houvesse o que houvesse, quem olhasse para aqueles pés saberia que iam chegar ao topo de mais uma montanha.

As línguas dos dois não eram as mesmas. Ele falava espanhol, e sua terra natal era a argentina. Era aquele idioma veloz, romântico, viril. Falava de um jeito meio brusco, mas seu jeito de ser combinava tudo, e transformava a fala do jovem em algo sempre amigável. Ele se comunicava bem, meio desajeitado, explicando tudo diversas vezes e gesticulando bastante. Ela achava graça e acabava entendendo o que seu parceiro dizia. Sua língua só parava para dormir ou para apreciar um ruído qualquer da natureza.

Isadora falava mansinho, fininho, baixinho, mas olhando bem firme. Não dava para não entender o que ela dizia. No máximo ela apontava para uma ou duas coisas, e então estava acertado. Ela sorria e iluminava tudo. Isa adorava o jeito exagerado de Victor. Não falavam o mesmo idioma, mas a língua dela acabava sendo a mesma da dele. Eram escaladores de montanhas, isso facilitava bastante, tinham os mesmos princípios. Os corações eram grandes, e do mesmo país, do país dos Escaladores de Montanhas, a terra dos Sonhos que tem um pedacinho reservado para cada ser humano sobre o Planeta.

Suas mãos combinavam bastante. Eram os finos dedos de Isadora e a grossa palma de Victor. Sempre se puxando, sempre se ajudando. Já estavam acostumadas a se encontrar pelas tortuosas subidas. Isadora havia reparado o quanto Victor gostava de pegar em suas mãos, e Victor sabia que ela gostava do apoio prestativo que ele oferecia. Assim, firmes nos galhos, passeando, cozinhando ou apenas abraçadas, as mãos subiam o inclinado caminho dos Escaladores.

O ímpeto de seus corpos era o reflexo da vontade de suas almas. Se encontraram na encosta da mesma montanha por sorte ou força do destino. Foram mandados por mestres diferentes. Reconheceram a marca dos escaladores em suas roupas, sorriram e subiram. Passo a passo, trabalhando para sobreviver, sob sol e chuva, para amarrar suas bandeiras de superação no topo.

Depois de duas semanas, Victor e Isadora chegaram ao topo. Subiram numa árvore não muito baixa, não muito alta, e amarraram suas bandeiras, a dele, vermelha, a dela, amarela, no mesmo galho, entrelaçadas. Desceram e apreciaram a vista abraçados. Então seus dedos se entrelaçaram, seus corpos se apertaram e suas línguas se misturaram. Dali em diante, suas montanhas seriam sempre as mesmas.