sexta-feira, 25 de julho de 2008

48 graus

Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1992.

- Nome?
- Maria.
- Quantos anos você tem?
- 19.
- Quanto você pesa?
- 56 kg.
- Tipo sanguíneo?
- “A” negativo.
- Certo... Seu diagnóstico é febre. Se importa de tirar a roupa?
- Não.
- Tire a blusa e desabotoe a calça. Isso. Sente-se na maca, por favor. Qual é o seu problema, Maria?
- É essa febre, doutor, que nunca passou.
- Vamos ver isso.
- ...
- ...
-...
- 48 graus! Você parece tão bem. Vamos ver isso? Dói aqui?
- Não.
- E aqui, sente alguma coisa?
- Normal.
- Vamos ver os seus olhos... Certo.
- Me sinto bem, doutor.
- Uma febre nessa altura pode causar sérios danos ao seu corpo, aos seus neurônios. Nunca ouvi falar de alguém que sobrevivesse até essa temperatura.
- É minha temperatura normal. Nunca me atrapalhou. Mas, socialmente, incomoda bastante. Não sei o que fazer. Todo mundo pensa que eu estou doente, que eu sou doente. Já fui a vários médicos, que tentaram várias coisas...
- Exame de sangue?
- Esta aqui. Espere. Aqui. Pronto.
- Umhum... E de urina?
- Este.
- Você fuma?
- Fumo e bebo.
- Com que freqüência mantém relações sexuais?
- Não sei. Semanalmente, acho. As vezes mais, as vezes menos...
- De fato, seus exames não indicam nada. Já os fez quantas vezes.
- Várias. Nem sei.
- E o que você sente?
- Não sinto nada. Sinto que minha pele está quente. Mas não sinto calor. Nem sinto muito frio também. Para mim é normal, como eu te falei. Mas meu corpo é muito quente.
- Em todo o corpo? Ou tem alguma parte que é mais fria?
- Em todo o corpo.
- Já teve alguma doença?
- Só reação alérgica. Camarão. Não posso comer camarão.
- Levante-se, venha para minha mesa. Não sei como te dizer isso, mas você é um caso a ser estudado. Ninguém vive muito com essa temperatura, mas você parece ótima. Seus exames não apresentam nada. Não há muito que fazer.
- Obrigada doutor. Queria apenas me livrar disso. Ser normal.
- Você é normal. É uma garota inteligente. O que faz da vida?
- Sou atriz.
- Minha mãe também era atriz.
- ...
- Acho que sei qual é o seu problema.
- Sério? Qual?
- Você sente isso desde que nasceu?
- Sim.
- É atriz há quanto tempo?
- Isso importa?
- Talvez.
- Cinco anos.
- Então é isso. Só pode ser isso.
- O que?
- Você é uma estrela, mas não brilhou ainda. Dedique-se um pouco mais a sua profissão. Tenho certeza que isso vai mudar quando colocar essa energia para fora. Qual sua próxima peça?
- O Pequeno Príncipe. Serei o aviador.
- É um bom papel. Talvez te ajude. Aqui está a receita...
- 15 horas de teatro por dia? Ser platéia uma vez por semana? E esse último, não entendo a letra.
- Não tem problema. Quando você começar a brilhar e sua temperatura baixar, vai acontecer mesmo.
- O que é?
- Dê tempo ao tempo. Vá brilhar, estrela. Sorte sua eu ser filho de atriz, não?
- Obrigada, doutor. Vou fazer como o senhor mandou.

Maria saiu do consultório achando estranho, mas já havia feito tanta coisa, que não se importou em cumprir as tarefas. Além do mais, ela gostava tanto de teatro, que não faria a menor diferença. Ela se dedicou muito, com afinco. Esqueceu-se da temperatura de seu corpo, que nunca baixou, e foi feliz. Um certo dia, em Brasília, em visita ao Complexo Cultural da República, flanando, pensou: “O que faço é a lente que me faz ver o mundo. Sou o que faço, faço o que sou. Algumas lentes convergem o sol. Deve ser o caso da minha. E meu sol é o personagem por trás do personagem...”

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Sonetos

Desistência
Estou cansado dessa vida,
Cheia de desgraças alheias,
Dessa minh’alma puída,
Cheia de feridas feias.

Estou suado, estou sujo,
Sinto a raiva no meu estômago,
Meu coração caiu em desuso,
Sem direção vou caminhando.

Mas, assim, não vou desistir,
Não é de minha índole patética,
Minha ação será destruir,

Tudo o que chamo de estética.
E do meu governo destituir,
Aquilo que penso ser ética.


Metalingüística
As vezes não termino,
Minhas próprias poesias,
Ficam sozinhas sem um fim,
Em eternas romarias.

Quase nunca consigo,
Concluí-las com efeito,
E fico lendo e relendo,
Trocando os versos sem jeito.

Nem sempre consigo,
Completar um soneto,
As formas que instigo,

As palavras que prometo.
Sou meu próprio inimigo,
Na composição do texto.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Estranho

Não é o que parece,

Não foi o que seria,
Não partiu na hora exata,
Não chegou aonde ia.

Não era bem assim,
Não era bem assado,
Não era como ela,
Não era de outro estado.

Não pediu para vir,
Não pediu para ficar,
Não pediu para partir,
Não queria mais estar.

No entanto prosperou,
Prevaleceu, no estopim,
Na hora que todo mundo disse não,
Só ela me disse que sim.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Sob velhas árvores, em um novo lugar

No Oriente Médio, a guerra era uma constante. A miséria e as ditaduras africanas pareciam vivas e alegres, a psicose brasileira dançava a musica que a psicose norte-americana cantava. Pais seqüestravam e matavam os próprios filhos, e nada mais era assustador. O mundo seguia e o país neutro ia junto, fazendo de conta que não estava ali, igual à juventude de Brasília, tudo meio que se arrastando, como o inofensivo princípio de uma avalanche mortal.

A cidade de Zurich unia o velho e o novo, e todo lugar era lugar de ler. A mentalidade era fantástica. Tudo era limpo e corretamente angulado, apesar de mecânico, até a gentileza em alemão e italiano das pessoas. Quase não se via algo escrito ou falado em inglês. Os jovens eram corados e bonitos, e até os loucos e os mendigos eram elegantes. Tudo como em um conto de fadas. Dava vontade de ficar por lá, Antônio pensava. Ficar com aquele trânsito, aqueles campos e aqueles olhos azuis que enchiam todas as avenidas. Assim era a bem iluminada cidade, ou cantão da Suíça. Como seria então a Noruega, ele se questionava.

No fone de ouvido, Bob Dylan repetia que a resposta tinha ido embora com a ventania, e as pessoas na calçada, ou às margens do lago, rolavam na grama e almoçavam salada, peixe ou salsichão alemão. Não havia muito o que dizer, e nem um conhecido com quem comentar aquela maravilha de lugar. Ele também não ficaria muito, pois ainda tinha de ir à Holanda e Alemanha. O clima era ameno na primavera. A busca, no entanto, não se detia pelo encanto personalístico com os lugares, afinal de contas, aldeias indígenas eram tão chamativas quanto a velha cidade, antigo recanto Celta. A busca do homem pelo sentido fundamental da vida, que não estava expresso em nada do que se via fora nesses tempos.

Antônio colocou sua imensa bagagem no gramado e sentou-se sobre a sombra de uma árvore para descansar. Começava a cochilar quando uma menina tipicamente suíça sentou-se sorrindo para ele. Finalmente encontrara, ou, na realidade, fora ele achado, por quem havia ido ter para continuar sua busca pela montanha mais alta. Maren tinha o símbolo dos escaladores tatuado no pulso, como lhe fora falado, e cabelos lisos de um preto azulado que ele não fora capaz de imaginar, e o jovem espanhol, de barba loira e olhos amarelos, robusto e de pernas grossas, parecia estar, de fato, diante de alguém diferente dele, e que tinha o mesmo objetivo. Ela se sentou, eles se deram bem a primeira vista, e ela tinha levado salada para ambos. Não se deram aos formalismos, eram escaladores, irmãos, discípulos, e já se conheciam, embora se vissem pela primeira vez.