quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Eu não existo

"O Sertão vai virar mar,
e o mar, sim, depois
de encharcar as mais
estreitas veredas,
virará sertão"

Antônio Conselheiro


Quando entrei no quarto de meu avô, o enigmático senhor Flory, naquela hora da madrugada, senti exatamente o mesmo cheiro que sentia quando criança, ao entrar na casa velha de Lavras, no sul de Minas Gerais. Todas aquelas madeiras antigas e rijas, recobertas de pó. O cheiro emanava da cama de meu falecido avô, e da cadeira quebrada encostada ao lado do estrado, que também estava encostado na parede. O plástico velho do assento se dobrava à fragilidade das juntas quebradas. Sentei nela aos três anos e eram fortes como um jovem à época, mas não resistiram aos solavancos e meu crescimento e do meu irmão, e do meu outro irmão, e do outro, e do outro, e do outro. Tudo aquilo me lembrava a cidade natal de meu pai. O quarto cheirava a alguma coisa que só então reconheci. Era o mesmo cheiro que Aureliano Babilônia deve ter sentido ao ler as últimas páginas dos pergaminhos de Melquíades, pouco antes da cidade dos espelhos, ou das miragens, ser varrida pelo vento. Era exatamente o cheiro da ventania que leva tudo o que existe e que se transforma em pó. Aquele era o cheiro da passagem do tempo, e nunca me dei conta. Literalmente debaixo do meu nariz. Ai de mim, que queria ser Peter Pan, que queria voar, lutar contra piratas, beijar Wendy e não envelhecer nunca, enigmático senhor Flory. Quando eu nasci você já era velho. Parece, em minha existência, sempre ter sido velho. As histórias da sua juventude remontam a Força Aérea Brasileira nos meados da Segunda Guerra Mundial. A mim, dessa triste batalha, só restam livros de histórias e relíquias de museus. Em contrapartida você nos deixou móveis antigos e uma folha de jornal. Meu avô é a Segunda Guerra Mundial. Brasileiros versus fascistas. Naquela hora olhei para os lençóis dependurados no varal do lado de fora, iluminados pela luz que fugia da janela, e imaginei um fantasma ou uma criatura maligna e bela entre os panos, me observando sem que eu pudesse percebê-la. Ninguém acredita, mas ela está mesmo lá. O véu sempre esconde a verdade. O véu da personalidade, o véu do tempo, o véu da noiva, o véu de Isis. Então caminhei apressado. Não mais que quatro passos para sair daquele quarto vazio que outrora, antes da queda do enigmático senhor Flory, era quase que como um templo, onde eu, neófito da vida, acólito da inexperiência, só entrava se autorizado, e mesmo assim, em silêncio, e não me demorava, padrinho. Estava tomado pela angústia. O sono não me vinha. Sentia vontade de fumar, de caminhar pela rua, de me transformar em um fantasma. Subia e descia as escadas. Enigmático senhor Flory, o senhor se deitou sem permissão. Ainda me lembro que meus lábios tocaram os seus e soprei meu alento para dentro de seu peito, imaginando que isso pudesse te trazer de volta. Ainda ouvi um gemido ao pressionar teu tórax em busca das batidas de teu coração, como quem cava à procura de um tesouro. Coisa que nunca contei a ninguém. Seria apenas um reflexo físico do ar que fugia de teus pulmões mortos mas, mesmo assim, pensei que fosse voltar comigo. Desde então o furacão voltou a ficar forte, e forte, e forte, e só agora começo a compreender que a tempestade que arrasa minha vida é esta mesma do Tempo, que vem soprando, matando e pulverizando tudo, cada vez mais rápida. Quisera eu ter olhos para todos os livros e imaginação para todos os contos. Mas sou só um homem atrasado que anda pela vida. Cheguei atrasado. Quase um mês depois do previsto, acho. O velho era o homem que sempre fora velho. Pena nunca ter alcançado suas manifestações, nunca ter subido alto o suficiente para ver, ainda que de longe, a luz dos seus pensamentos, para que eles iluminassem os meus agora. Um coração bate no meu peito. Tu-tum, tu-tum, tu-tum. O ar entre e sai dos meus pulmões. Meus nervos trabalham incessantemente, 24h por dia. Enigmático senhor Flory, foi assustador te ver deitado no chão, e não em sua cama, com os olhos vazios e esbugalhados, e a boca aberta e sem dentes. Quem esperava? O tempo. A morte. Castañeda sabe que ela está à nossa esquerda, a um braço de distância, esperando o último segundo para tocar nos nossos ombros. Se olharmos de relance e percebermos uma sombra, é ela. Tudo é passageiro, tudo é ventania, tudo é Macondo. Deus, leve-me embora de Macondo. Então chove e chove e chove. Volto à realidade. Sento diante da máquina de escrever e escrevo. A morte, bela e doce, fuma sentada à minha janela. Que pernas. Finalmente fumo um cigarro. Não sei ao certo o que é real e o que não é. Parece que ainda ouço aquelas palavras ao telefone. Giro o disco para chamar alguém. Parece que atravessei a última linha, em silêncio, como o soldado que caminha nas terras inimigas, mas sempre com a fronteira ao alcance da vista, como um navio português que contorna a África a caminho das Índias, sempre com a costa à esquerda. Respiro aliviado. Me sinto mais tranqüilo. Parece. Apenas parece. Enigmático senhor Flory, que sou eu, de onde venho e para onde vou?