segunda-feira, 1 de setembro de 2008

El tango del jaguar

Caminho sobre os trilhos do trem. Como um mendigo. Como um indigente. Mas minhas vestes são razoavelmente novas. Não estou tão sujo. Mas essa é a atitude. Desci do vagão do trem, e agora, guiado pelo caminho de aço, caminho em meio a mata, sob a luz das estrelas. Algo que nunca fiz antes. Conto tudo em pensamento para meus parentes, que vão se horrorizar, que nunca entenderão. Sou novo no ramo de viagens improvisadas. Como um qualquer, um revolucionário, um louco andarilho, um poeta medieval, caminho sobre os trilhos do trem. Sou um felino de grande porte, um pássaro carniceiro, um caçador alado, um espírito livre. Eu mesmo sou a assombração. Sou a terra seca, vermelha, ou molhada, marrom, grudando na sola dos sapatos. Vivo nos anos 70, 80, 90, 00, e tenho apenas 20, apenas 30 anos. Não conheço a vida.

O vento frio começa a fustigar a nossa pele. Meu amigo segue em silêncio um pouco mais atrás. Guarda seus pensamentos em direção silenciosa. Faço de conta que posso ouvi-lo, enquanto presto atenção no som dos seus passos. Ainda não sei quando vou parar, mas sei aonde vou parar. Posso ouvir a respiração dele. Estamos concentrados no ato de caminhar, como vagabundos iluminados. Meus pés doem. Minha garganta está seca, mas meu estômago está cheio. Eu poderia ser um fugitivo. Poderia ser encontrado por um ladrão, por alguém de má índole. Perdido na mata, podia ser vítima de animais e assombrações, de doenças e loucuras. Poderia assassinar meu companheiro de viagem, ou ser assassinado por ele. A única coisa que nos separa disso é o que nos faz acreditar que estamos separados disso.

Vindos de Brasília, semi-burgueses, cansados, com dinheiro no banco e sem nada no bolso ou nas mãos, questionadores, levianos, puristas, turistas, solitários, seguimos. Caminho sobre os trilhos do trem e penso em meus familiares, em minha infância, em meu último emprego, no meu último chefe. Tenho vontade de matá-lo. Penso em minha namorada e nas brincadeiras de infância. Sempre fui muito imaginativo. Sou um soldado perdido. Eu e meu camarada nos perdemos de nosso batalhão em um ataque. Nossa missão é sobreviver. Estamos em um país inimigo, cansados, com medo, mas valentes e patriotas. As selvas vietnamitas de Minas Gerais cortadas pelo trilho do trem, são nosso único escudo, e ao mesmo tempo nos desnudam. Unidos, seguimos.

Preciso mandar um e-mail quando chegar à próxima cidade. A bateria do meu celular acabou. Preciso de uma cerveja gelada, de um violão, de música, de mulheres. Preciso de um bloco de notas e uma caneta. Penso. Penso, logo caminho. Penso nela, nua, sobre mim, devagarzinho, ou dominada, vítima, com as pernas presas. Penso em outras, sorrio, não penso, sou levado a pensar. Um produto inócuo do meio. Nada mais. Vil, invejoso, consumista, egocêntrico, impulsivo e temerário. Nada mais. Valente, filósofo, escritor, determinado, esperançoso e idealista, nada mais. Espanhol, latino-americano, brasileiro, peruano, caucasiano, cristão, judeu, budista, muçulmano. Nada mais. Aqui, esquecido por Deus, sob os olhares atentos das constelações de novembro do hemisfério sul, não sou ninguém, tal qual Odisseu. E assim como o ardiloso grego navegava, guardadas as devidas proporções, sobre os trilhos do trem, caminho.

Gosto da palavra “inócuo”. Também gosto da palavra “determinação”. Gosto de várias letras também. Em especial o “M”, de “Maria”, o “J”, que tem pingo, mas não é “i”, e o “G”, que é a primeira letra do meu nome. Meu andar está trôpego. Meus pés se jogam para frente e meu corpo para as laterais, em zigue-zage. Meus olhos pesam. Meu amigo caminha como eu. Um pouco pior. Ainda falta muito. Podem ser dias. Espero que não. Ainda é o primeiro dia de caminhada. A mochila já está pesada. Devem ser 23h. Não. São 23h45. Ainda é cedo, mas estamos cansados. Já chega. Vou parar. Vamos armar o saco de dormir ali. Tem que ver se não tem cobra. Se um trem passar de madrugada, vai nos acordar. Que se dane. Aqui. Ainda tem aquele suco? Me dá um pouquinho. Tenho miojo e rizoto. Vamos de rizoto. É, isso é engraçado. Não, acho que não. O Cruzeiro não chega lá. Perdemos. Espero que as frutas não apodreçam. Arruma o fogaréu. Vou preparar uma fogueirinha também. Também acho. Que a próxima cidade não esteja longe. Da próxima vez, só de carro. Nada de carona clandestina. Ainda é cedo pra falar. Muito bom. Você vai ligar para ela? Vou também. É uma situação delicada. É engraçado. Meu pai veio da Ucrânia, mas a mãe dele é brasileira. Jã morreu. Não Meu outro avô é que é da sérvia. Não sei. Sou um típico jovem de Brasilia. Foi aquele árabe lá. Comédia. Isso está gostoso. Vamos comprar mais. Quando chegar no Sul eu vejo. Não sei se quero ir à Argentina. Vamos ver até lá. É. Isso aí. É só se ajeitar. Afonso? Já está dormindo. É verdade. Boa noite...

11 comentários:

  1. A noite chegou. O trem chegará para levar a noite. Já é dia? Os passos serão necessários tanto quanto a vida.

    * Beijos menino Luíz!

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  2. Respire profundamente. Gosto de viajar, obrigado. Expire prolongadamente. Gosto de tudo que tenha mente no meio. Mas então... Finalmente relaxado.

    Falei que era uma boa idéia.

    ;)

    B, b.

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  3. Me lembrei daquele filme clássico da sessão da tarde, Stand By Me, saca?
    Que os menininhos saem em busca do corpo de um garoto?


    E, sim: somos apenas uns latino-americanos que não tem cheiro nem sabor.


    :)

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  4. Aquele seu texto inspirado no Joe Sacco me inspirou também. =)

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  5. É verdade, Jana. Eu nem tinha ensado nisso. Deve ter sido um pouco subconsciente... Adoro esse filme.

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  6. Gostei do fim parecer uma conversa... Os discursos sem resposta ou só com um interlocutor parecem falar sobre o resto do texto. Abraços!

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  7. me senti a companheira de viajem,
    quem sabe a companheira de carona, ehehehe

    =)
    Dani Fernandes

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  8. Hehehe... Pegar carona em uma viagem dessas? Eu queria.

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  9. Olá Rei Luiz (já leu o livro 'Meu Pé de Laranja Lima? Lá tem um Rei 'Luís')... preciso vir te visitar com mais tempo. E ler tudo com calma (perdi muita coisa desde a última vez).

    Abraços!

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  10. .

    sabe, teu texto eu li de uma vez só. nem devo ter respirado. e se respirei, foi um ar meio espesso de estrada, um ar com poeira, um ar gelado.

    somos todos vagabundos iluminados.

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  11. Vagabundos iluminados...
    Gosto do seu estilo rápido meu caro, lembra o cara que escreveu um livro que em português ganhou esse título.

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É isso aí, amigo, manda ver!