terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Especial de Natal Casa das Mentiras

O homem de terno marrom avançou em meio às pessoas da feira, com passadas fortes e firmes. Passou pelos melões, pelos pimentões, pelas cenouras, por uma velha com a sacola enorme, pela mãe com o filho, pelo namorado com a namorada, pelo tomate, pelas mangas, pelo casal de velhinhos, pela figura de burka, pelo rabino, pelo judeu, pelo homem negro de roupas colorida e pelos americanos. Ele movia todo o seu corpo para frente com o olhar fixo e uma determinação elevada, para que seu espírito não o traísse pelo medo. Puxou o homem de terno cinza, que sorriu por uns instantes ao vê-lo, e socou-lhe a face.
Antes que a vítima pudesse se dar conta do que estava acontecendo, o agressor marrom socou-lhe novamente a face e o derrubou no chão. As pessoas se amontoaram. Uma mulher gritou. Homens se aproximaram para apartar, mas não conseguiram deter aqueles braços contrariados e fortes, que pareciam, incrivelmente, agir por dever. E, tomado por uma ira, o homem de terno marrom sentou sobre o homem de terno cinza e deu-lhe mais três tapas, até que o outro finalmente desse conta do que estava acontecendo e elegantemente afastasse o brutamontes para longe de si sem muita dificuldade.
O homem de terno marrom estava aos prantos, enquanto o agredido recompunha-se sem uma gota de raiva no olho, embora tremesse um pouco e tivesse sangue nos lábios e os olhos bem abertos. Depois que estavam de pé, frente a frente, o homem de terno cinza finalmente respirou e começou a falar enérgico. As pessoas que se detiveram por alguns momentos enquanto brigavam, voltaram a caminhar comentando o ocorrido sem entender e fazendo especulações diversas. Curiosos, atentos e pessoas bem e mal intencionadas seguiram seus caminhos.

- Por que me bates? Não tínhamos conversado? Não estávamos resolvidos? Achei que não te devesse mais nada! Mas agora, aqui, em praça pública, me humilhando na frente de todos esses desconhecidos, você me soca a face!? O que queres que eu pense? Já fiz tudo que podia ser feito! Já te pedi desculpas!
- Não se trata mais de você. Não te bato por ódio, e nem por rancor!
- Recomponha-se! Pare de chorar. Não há necessidade disso. Se me feres, quem deveria se verter em lágrimas sou eu, e não tu. No entanto não choro, então também não tens motivo.
- Choro porque sofro em te infringir dor. Por que ao te ferir me machuco ainda mais.
- Não entendo então. Já te pedi perdão de joelhos! Se sofres tanto em me agredir, se isso não te trás nenhum alívio, porque me esbofeteaste?
- Você sempre foi mais forte! Mesmo eu sendo maior, você sempre foi melhor de briga que eu! E mais ainda, sua força moral sempre esteve acima da minha, muito mais elevada. Mesmo que você tenha me ferido de um jeito que nenhuma dor física consiga me atingir, meu amigo, meu irmão, continuo sentindo essa força espiritual inspiradora emanar de você e me guiar pelos caminhos do mundo como um mestre... Você sempre esteve acima para mim...
- Não compreendo. Aonde queres chegar? Queres novamente que eu te peça perdão por tudo que fiz? Se quiseres, eu peço, aqui, de joelhos, em frente a todas essas pessoas. Não me custa. Não é demais para mim. Somos irmãos. Teu perdão vale mais que meu orgulho. Não temos o mesmo pai ou a mesma mãe, sou rico e tu és pobre, mas eu te amo e nem Allah pode mudar isso. Eu te peço: perdão, meu irmão. Pequei contra ti e contra meu espírito. Te peço perdão.
- Não é isso. Não quero que me peças perdão novamente. Não te humilhes. Levante-se, por favor...
- O que queres então? Porque me esbofeteaste?
- Precisava... Precisava ter certeza...
- Certeza de que?
- Certeza de que realmente lhe perdoava, com o meu coração, com o meu espírito, e que não fazia isso por covardia ou impelido por tua grandeza, por interesse pessoal.
- Irmão!
- Por que me olhas assim? Estás a chorar tu agora?
- É que agora me sinto realmente perdoado. Compreendo a essência e o valor dessa palavra como nunca. Não há mais arrependimento, porque vós me perdoastes. Muito obrigado, irmão! Muito obrigado. Allah foi muito generoso de pô-lo em meu caminho. Tu és um homem superior. Toda a dor que me causaste agora a pouco tornou-se em redenção!
- Pare de chorar tu agora, que estás a me envergonhar. Dá cá um abraço, meu irmão querido! Não vamos brigar mais.
- A partir de hoje este dia será considerado feriado em minha família, e trocaremos presentes em tua homenagem! Sumaya vai preparar um belo jantar hoje. Poderias passar lá em casa para nos saudar com tua presença, para comemorarmos esta data especial.
- Claro...
- Acreditas que...
- Sim, com certeza...
- ...
- ...
- ...

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Apresentamos o Especial de Natal Casa das Mentiras!. Em breve voltaremos com mais sobre a saga O Caminho das Folhas, e a história de Thomas, Ilka e Rafaela. Feliz Natal a todos!!!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O caminho das folhas - A festa (Cap. 2)

Cheiro de expectativa no ar. 16 de abril. Tudo decorado. Balões vermelhos, verdes e brancos. As mesmas cores no xadrez das roupas dos garçons. O estúdio de paredes roxo-cinzento estava todo decorado, igual a um salão de festas. As cortinas estavam fechadas e o som desligado. Os convidados eram servidos em suas mesas. João afinava uma guitarra no volume mais baixo. Tom ia chegar a qualquer momento. Era uma surpresa. Uma grande surpresa. Ele tinha 27, mas não era seu aniversário. Rafaela corria para lá e para cá. O interfone tocou. O porteiro avisou que o dono da casa estava subindo. Todos apagaram as luzes. A menina preparou o próprio triunfo, que era comemorar o triunfo do irmão. Silêncio.
Rafaela estava com a razão. Ele fora aprovado com mérito. Foram quatro anos de estudo. As coisas deram certo rápido demais para ele. Era agora mestre em fotografia e comunicação visual pela Universidade de Brasília. Ele parou o carro, caminhou contente pelo piloti, ansiando chegar em casa e contar tudo para a irmã. Esperava um cafezinho, e depois trabalhar nas fotos que o GDF encomendara para a festa de gala de aniversário de Brasília. Um silêncio cairia muito bem. O porteiro estava estranho aquele dia. O fotógrafo entrou na portaria, entrou no elevador e parou no corredor do primeiro andar. A luz se acendeu. As paredes branco-gelo e a samambaia de mentira em um grande vaso o cumprimentaram.
Estouros, cornetas, confetes e serpentinas no ar. Thomas abrira a porta. Um imenso grito de surpresa o deixou paralisado. Os Paralamas começaram a tocar Vital e Sua Moto. Rafaela pulou de chapéu, língua de sogra, colar de flores havaiano e nariz de palhaço em sua frente. Estava com aquele sorriso que era um sorriso sempre ideal, com convinhas, maroto, engraçadinho. Ele fora pego. Não tinha escapatória, mas estava feliz. Aquela diabinha. A levantou no colo e girou. Ela gritou. Ele a soltou. Muitos vieram lhe dar os parabéns. Abraçou João, seu eterno irmão de aventuras, cumprimentou os colegas de faculdade da irmã, inclusive o tal Lucas. Sorriu para todos e atendeu o telefonema dos tios do Rio Grande do Sul.
Muita lasanha, vinho tinto, macarronada e profiterolis para a sobremesa. Belle and Sebastian, Franz Ferdinand, Gal Costa, Caetano Veloso, Legião Urbana, Pink Floyd e Beatles. O volume foi abaixando. O número de pessoas foi diminuindo. Os carros na rua foram desaparecendo. A euforia foi chegando ao fim. Thomas beijava Graziela. Se atracavam. Os garçons estavam exaustos quando finalmente se foram. Os visinhos já haviam reclamado. A casa pareceu mais deserta que o habitual. Havia muito lixo. A garota beijoqueira da agência de publicidade ficou por último com João e Cálida para ajudar os irmãos. Depois ficaram sentados na cozinha, tomaram café e falaram sobre a vida. Tom contou como foi sua banca. Como desbancou.
Passava das 3h. Rafa abraçou o irmão com força. Ele sorriu. Estava com olheiras, esgotado. Ela também. Os planos de trabalhar naquela noite foram por água abaixo. O som alto ainda reverberava em ecos, latejando na cabeça dos cinco. Grazi, então, foi embora. João abraçou o amigo novamente. Cálida se despediu. Eles insistiram para o casal ficar. A caçula sorridente trancou a porta quando enfim estavam sós. Tudo voltara ao normal. Mais ou menos. Era uma nova fase para o mais velho. Mas ainda eram os mesmos. Ele levou o porta-retratos do quarto para a cozinha, e trocou a foto da geladeira, com Rafaela de palhaça, pela foto dos irmãos abraçados na creperia. Nela estava escrito: “Garotos perdidos! Eternamente unidos”.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O caminho das folhas - Queda livre (Cap. 1)

Era 13 de setembro. Tom abriu os olhos de manhã. Estava com o rosto inchado. Sentia ressaca. Sua barba castanha estava desgrenhada na face. Sentiu um mormaço na boca. Procurou por Rafaela, mas ela não estava em casa. As janelas estavam todas abertas. Uma luz clara, de dia ensolarado, entrava por todos os lados. Ele levantou-se e caminhou de cueca e camisa sem manga branca pela casa. Coçou a bunda e fungou com o nariz. Tossiu e pigarreou. Na cozinha, um recado em cima da mesa. Ele levantou e aproximou o papel dos olhos. Estava sem lentes. “Fui ao Poço Azul com uns amigos, não me espere para o almoço. PS: A Ilka, do photo, te ligou. Disse que você pode ir buscar os quadros. Peguei o Ka. Beijos, mano”. Ele olhou o relógio de pingüim sobre a geladeira. Eram 9h20 e pouco. Pigarreou novamente e foi vestir-se. Era uma bela sexta-feira.
A agenda de Tom estava vazia. Ele gostava de reservar uma sexta por mês, pelo menos, para ficar com amigos, beber e olhar a cidade. Alguém tocou a campainha. Ele gritou que esperassem. Cuspiu a pasta na pia, bochechou, limpou a barba e os olhos e enxugou o rosto rapidamente, vestiu as calças desajeitadamente, e ainda descalço e com a blusa cavada branca, correu para abrir a porta sem pentear os cabelos. Quem seria? Quarto, corretor, cozinha, estúdio fotográfico, porta da rua. Era um policial militar. Ele abriu a porta e sorriu. O homem tinha um olhar estranho. Tom ficou sério. Por um momento, não era um policial, mas um homem fardado, e carregava consigo um fardo sobre a farda e o olhar de quem ia passá-lo adiante. O medo perpassou a garganta do jovem fotógrafo. Ele tossiu breve e contido. Tudo parecia eternamente lento, embora segundos se passassem. Eles se encaravam. Ele convidou o homem para entrar, mas a princípio ele não aceitou. O homem tinha um papel em mãos, e leu alguma coisa antes de falar...
- Senhor, o senhor é Thomas Braga?
- Algum problema?
- O senhor é irmão de Rafaela Stacciarine Braga?
- Rafaela? Sim. Por quê? Alguma coisa errada com ela? Ela está bem?
Tom sentiu o coração disparar. O que um policial estaria fazendo em sua casa pouco antes das 10h da manhã para falar sobre Rafaela? Ele não queria escutar o homem de cinza, queria apenas vê-la. Tentou não pensar no pior. O sangue subiu para sua cabeça. Seus olhos ficaram fixos no homem da lei. Ele esperou que ao pessoa diante dele dissesse mais alguma coisa.
- Senhor, sinto dizer, mas ela sofreu um grave acidente de carro, na estrada que dá acesso a Brazlândia. Não senhor. Sinto muito. Morreu antes mesmo do socorro chegar ao local. Acalme-se. Senhor Thomas, por favor apóie-se no meu braço. Isso. Vamos entrar. Venha comigo. Me guie pela casa. Procure respirar. Onde é a cozinha? Isso. Isso mesmo. Sente-se nessa cadeira. Vou pegar uma água para o senhor. Mantenha a cabeça abaixada, assim, sua pressão baixou muito. Quer que eu ligue para alguém? Não pode dirigir assim. O senhor tem alguém para te acompanhar no IML? O senhor terá de ir ao IML. Não é bom que o senhor dirija nesse estado. Quer que o leve?
- Não. Liga pra alguém. É melhor. Liga... Liga nesse número – aí na geladeira.
- Um momento senhor. Onde está o telefone?
- No estúdio, perto da porta.
- Só um instante. Já volto. Tome essa água. Quer que chame um médico?
- Não.
- Um momento. Alô! Senhor João? Aqui é o cabo Fontoura da Polícia Militar. Sim. Isso mesmo. Ricardo Fontoura. Estou na casa do senhor Thomas. Não, ele não está bem. Não. Ele perdeu um parente. Disse que eu poderia te ligar. Para o senhor vir vê-lo. Já está a caminho? Vou avisar. Sim. Por nada. Ok. Pode deixar. Senhor Thomas? O senhor está melhor? Tem certeza de que não quer que eu chame um médico? O João já está a caminho. Esse é meu número. Se precisar, pode ligar. Posso esperar por ele, se preferir...
- Não. Não quero. Vá embora, por favor. Muito obrigado. Preciso entender o que está acontecendo. Vá embora, por favor. Eu quero ficar só. Eu sei. Não, não vou fazer nada. Me dê licença. Saia da minha casa. Eu vou ao IML. Vou esperar o João. Já tenho seu celular. Muito obrigado. Agora, vá embora, por favor. Por favor.O cabo não foi realmente embora. Ficou na porta da casa de Thomas, com ouvidos acurados, escutando barulhos, com medo de que ele fizesse alguma besteira. Tom, por sua vez, não se importou de que o homem ficasse em sua porta. Nem o viu, para falar a verdade. Nem se lembrou dele depois de encostar a porta, que era de ferro, pesada, de um azul bem escuro, com um olho mágico no meio, e sobre o olho, do lado de fora, o número do apartamento: 111. Não sentia vontade de chorar. É como se não entendesse o que estava acontecendo. Não tinha alma, não tinha sentimentos. Estava pálido, vazio, sentia-se tonto e desorientado, e uma dor sem tamanho fazia com que suas energias se esvaíssem por todos os poros de seu corpo como uma torneira aberta que desperdiça água. Suava frio. Ele voltou para a cozinha e sentou-se novamente. O copo de água, ainda pela metade, estava inerte sobre a toalha de plástico amarelo que Rafaela tinha comprado. As canecas engraçadas da menina estavam dependuradas na parede, como olhos que o encaravam. O copo ainda sujo de leite estava sobre a pia, como um sorriso amarelo e sem jeito, pois ela nunca lavava louça pela manhã. A casa era intocada. Tudo transpirava a alegria jovial de Rafaela. Eles só tinham um ao outro. Ele foi entendendo aquilo. A notícia foi se misturando à realidade. Se misturando. Sua cabeça girava mais e mais. Rafaela estava no silêncio, na solidão, na ausência, em um recado que acidentalmente fora parar no chão, na foto dos garotos perdidos, no nariz de palhaço, no ladrilho laranja, nas roupas espalhadas no quarto de empregada, no porta-retratos, mas subitamente não estava mais ali. Ele deu um grito de agonia, liberando todo seu inconformismo, cerrando os punhos, se contorcendo. Bateu, em um espasmo violento, no copo, que se quebrou, cortando-lhe as costas da mão. O vidro e a água se espalharam pela mesa e pelo chão. Um pouco de sangue gotejou. Ele apoiou a cabeça nas mãos e os braços nas pernas e chorou como uma criança, e caiu no chão, em decúbito dorsal esquerdo, e encolheu-se em posição fetal, socando o piso, com o estômago pegando fogo, com as veias na fronte a ponto de explodirem, hora sussurrando, hora gritando, com lágrimas intermináveis e muco sujando seu rosto, sua barba, seus cabelos, na esperança que Deus ouvisse suas súplicas, seus palavrões, sua revolta, que Rafaela entrasse pela porta sorridente e prática, que fosse mentira, que fosse um trote ou um pesadelo, até a última réstia de força, afogado em agonia, e apenas sussurrava sonolento quando João, com seu casaco de flanela, também em prantos, o ergueu e o levou para o quarto sem dizer uma palavra. Num ato sereno em meio à tragédia, os amigos se arrumaram em um silêncio agônico, e dirigiram pelas vielas de Brasília rumo ao Instituto de Medicina Legal. Na Rádio Notícias, uma repórter falava do acidente que deixou dois jovens em coma, em estado grave, e fez uma vítima fatal, a estudante de arquitetura do Centro Universitário de Brasília, Rafaela Stacciarine Braga, de 19 anos. John desligou o aparelho antes que a matéria terminasse.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Linha Tênue

A vida é um punhal
Um punhal, qual faca de dor
Faca da vida, curta e alheia,
Longa e distinta,
Um punhal.

A vida é faca, é lâmina,
Metal frio e fino,
Fio de navalha que separa a carne,
Que fere a pele
E abre sulcos...

A vida é um corte profundo,
Que se esvai,
Que toma em goles a si mesma,
Que se derrama no mundo.

Viver é morrer,
Morrer é lutar,
A vida é lança carrasca,
Corrente que arrasta,
Punhal a cortar.

A vida é fera ferida,
É gato manco que corre na relva,
É Cristo na cruz,
É sangue que derrama,
É réstia de luz.
Vida é vida... é morte.

E que fatal, fatalmente,
será ferido a faca?
Faca da vida.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Nas pequenas coisas

Antenor, em suas andanças, acabou por se deparar com uma garota diaba que não tinha quase nada de brasileira. Só o idioma e a nacionalidade. Era Vanessa, a menina rica. Era quase exótica, filha de gente estrangeira, sem modelos, sem limites, sem desejos, sem saber o que fazer com a dádiva que o universo nos deu de viver (e que erroneamente atribuímos a nossos pais, sem saber que não precisamos tanto deles assim), totalmente libidinosa e serviçal, ao mesmo tempo que era mandatária. Na verdade era por isso que ele a via como uma diaba. Não ter o que fazer da vida é ser meio diabo, já que essa criatura-deidade-cristã (terceiro Deus dessa religião falso-monoteísta), foi banida para o inferno com suas hostes e séqüitos verminosos de amaldiçoados, para não ter função na criação. E foi nessas circunstâncias, imerso no tédio de sua condenação, que o satanás resolveu importunar os homens, filhos de Deus e primos em primeiro grau dos anjos.
Na verdade, nem eu, nem Antenor e nem Vanessa somos crentes desse tipo de história. Mas aqui ela é uma metáfora que nos cabe muito bem para dizer que a princesa do Nada era insaciável e sem desejos, que queria tudo e nada, e com sua poderosa noção de livre arbítrio virava do avesso a alma, a mente e o poder sexual de nosso herói. Aliás, segundo o próprio e muito sábio Antenor, não se deve dar muito ouvido a histórias e inclinações religiosas de nenhum tipo e de nenhuma cultura, a não ser para metaforizar a vida, afim de entendê-la melhor. Mas ele a encontrou em um barzinho subterrâneo (aí está mais uma proximidade com os infernos), em uma quebrada da Asa Norte, e é isso que importa agora.
Nesse ponto da curta história de Antenor e Vanessa entram as estrelas e os planetas, pois aquele casal viril, dado ao sexo e às coisas da carne de modo um pouco aterrador e espiritualizante, não tinha nada para se encontrar, mas se encontrou. A história mesmo não é curta, mas aqui ela vai ser, embora para os moldes da rede mundial de computadores ela seja até um pouco longa. Mas a astrologia entra nessa hora porque a conjunção dos planetas e a vida na terra fez com que duas pessoas, pouco parecidas mas com muitas coisas em comum, que levavam vidas distintas e distantes embora morassem na mesma cidade, se encontrassem assim do nada, como que por fruto do acaso, em um bar onde a música era ruim e que ambos haviam entrado de cara torcida e com vontade de ir embora, em um acontecimento constrangedor.
A vida é mesmo um jogo de sinuca, ou mesmo o universo o é, pois foi jogando sinuca, em uma tacada já perfeitamente calculada que no entanto saiu pela culatra (note que “culatra” é uma palavra que lembra “cu”), que Antenor derrubou a cerveja de Vanessa e pode então participar daquele mundo insosso e se deliciar daqueles lábios finos de princesa presa na torre e deitar-se, depois, sobre aquele corpo febril e deflorar a jovem com força, firmeza e ternura, e beber aquele caldo indigesto que lhe tomava o juízo. Mas chega de sexo por agora.
Ele puxou o taco para trás. A ironia aqui está nas probabilidades: primeiro, a tacada de Antenor ia decidir o jogo, e ele e Leon iam ganhar de Akira e Caetaninho, pois as bolas iam se configurar na mesa depois do acerto de uma maneira tal qual interplanetária que ia favorecer os dois mais jovens e mestrandos em comunicação, e derrubar Takeshi e Sólon, os professores de física do Colégio Objetivo (As Melhores Cabeças!) e camaradas de preserpagem dos dois primeiros durante o segundo grau; segundo, se ele não acertasse, o que era muito difícil de acontecer perante as possibilidades existentes, a jogada de Sólon ia configurar aquele universo relativo de planetas numerados de forma tal que o neutralizaria, o que era impossível que eles soubessem, mas lógico perante as leis da física e a habilidade e escolhas do grupo, e por uma seqüência de venturas, aos poucos, na seqüência de acontecimentos sinucosos, os meteoros e seres celestes do retângulo verde seguiriam para uma posição favorável não ao herói, mas os amigos dele, já que nenhum dos camaradas ali presentes eram de fato vilões; e terceiro, porque dizem que quem tem sorte no jogo tem azar no amor, e vice-versa. É difícil de entender, mas é irônico mesmo assim.
Na hora em que ele puxou o taco para trás na ânsia de caçador, na hora de atingir a presa desavisada, de destruir a civilização pecadora, de encaçapar e remodelar a mesa em nome da vitória dele próprio e de seu camarada Leon, Antenor bateu no copo de cerveja de Vanessa, que, desavisada, caminhava bem atrás do rapaz. O choque fez com que a cerveja da menina se derramasse na blusa branca, que ficou um pouco transparente, revelando um sutiã de inúmeras Betty Boop pequenininhas, e a tacada do rapaz se alterou no sobressalto de tal maneira que ele bateu na bola de um jeito estranho, ridículo e desengonçado, fazendo-a pular, rolar bem devagarzinho e não acertar nada, favorecendo totalmente a dupla de professores do ensino médio.
Ele olhou para a menina irritado. Ela também não estava feliz de ter molhado a roupa. Os dois começaram a rir. Como em um filme água-com-açúcar, ele pegou guardanapos para secar a blusa dela, passou a mão naqueles seios pequenos e tornou tudo um pouco mais constrangedor, mas só a ponto de estreitar mais rapidamente a relação que começavam a ter. Rude assumiu o taco de Antenor tornando o jogo ainda mais desfavorável para Leon, e para a felicidade de Sólon e Takeshi, o quinto amigo e mais habilidoso de todos abandonou a partida, entusiasmado que estava em conversar com a garota solitária, e aproveitando a oportunidade de abandonar o bar, que apesar de momentaneamente divertido, continuava incômodo.
Engraçado o fato de a mudança no jogo de sinuca se alterar por fatores abrasivos, porém distintos, tal qual o destino da humanidade sendo decidido por deuses gregos, que personalisticamente são tão caprichosos, mas simbolicamente são tão profundos e dados à alquimia e outras coisas espirituais que não estão, no entanto, ligadas ao religiosismo fanático e enganador da atualidade, pregado pelas instituições mentirosas que se dizem portadoras da palavra divina e que são, na verdade, ímpias, e não puras. As ações divinas dos Deuses das antigas religiões, de modo calculado, expressam desde a origem cientifica do universo até os destinos das civilizações, passando pela fábula e pelos dilemas morais de cada um de nós, de modo a transpassar toda a jornada intergaláctica de vida que vai parar no homem e continuar nos animais, vegetais e minerais. Tudo isso podia ser visto por olhos atentos naquele encontro casual.
E foi assim, como uma cosmogonia sexual, que Antenor e Vanessa tiveram seu primeiro encontro. Ele tinha 29 e ela 18. Se beijaram, se amaram, se apaixonaram e juntos, similares a duas forças da natureza que se completam, in e yang, positivo e negativo, claro e escuro, essas coisas, o casal liberou suas energias, criou, escutou música, produziu, trabalhou junto, fez projetos, atuou no plano real e trouxe pensamentos para o mundo das sensações. Erraram muitos caminhos, acertaram outros tantos. Ele enviava seus cometas para dentro dela. Ela os bebia em cima e embaixo. Sempre transavam. Ele adorava aquele corpo frágil e magro. Ela adorava aquela forma barriguda e esbelta. Viviam de tezão.
Como uma mitologia que começa nos acasos cósmicos e termina na vida humana, na epopéia para alcançar a condição heróica e depois novamente a existência divina, encerrando os ciclos e dando origem a novas dinastias olimpianas, Antenor e Vanessa tentaram reunir os pedaços de Osíris, e procuraram, tal qual Horus, guardadas as devidas proporções, a felicidade – assim – nas coisas pequenas da vida. Nos passeios, nas viagens, nos ruídos e coincidências e principalmente escalando montanhas, buscaram um sentido para tudo, já que tudo era dotado de um sentido sem sentido e precisava ser desvelado. Qual era o sentido por trás do sentido?
Antes, a vida dos jovens era mais ou menos como estar atônito diante da web, diante das tantas possibilidades de sítios e assuntos, diante de tanta oferta, que simplesmente não sabemos o que fazer no cyberespaço. Tudo era possível. Todas as saídas. As boas e as ruins. Juntos ganharam direção, e só não viveram felizes para sempre porque isso é impossível, e porque ninguém é inocente. Deram origem à segunda dinastia de buscadores da verdade: tiveram dois pequenos seres-humanos cabeçudos e barrigudos, dois meninos lindos de se ver, Juan, parecido com o pai, e Marcos, parecido com a mãe, que um dia iam contemplar o mundo ainda pior e que, aristotélicamente, também iriam buscar a felicidade em nome deles mesmos, de suas famílias e de toda a humanidade. Vanessa se dedicou à pintura e teve razoável estabilidade graças às suas inclinações comerciais. Nunca mais falou com os pais. Antenor nunca abandonara o casaco xadrez, a guitarra e a mulher, que morreu aos 38 anos, de acidente de carro, em um dia chuvoso, enquanto voltava para casa depois de um leilão de quadros. Hoje ele é músico e professor e os meninos estão na universidade.
Tudo isso, graças a um jogo de sinuca... O ano é 2015. Como eu sei? Eu estive lá. Estive lá e vi.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Blogosfera no poder - Selo

Soldados do contemporâneo, criadores. Em forma humanóide, com mãos e pés grudados, como um imenso ser uno bizarro e semi-rastejante, criador e destruidor, desforme e terrorífico, amável, seguimos oníricos. Partilhamos e compartilhamos, partimos e repartimos e re-partimos o lógos de um semi-manifesto! Viva a W3! Viva 23 de dezembro de 2012! Que venha o apocalipse!


Poder

Blogosfera,
Blog esfera,
esfera,
Armilar,
Arma e lar,
Esfera armilar,
Blogosfera Armilar
Blog, esfera, arma e lar


Mais selos -

E para celebrar a blogosfera nesse post atípico (na verdade todos os posts são atipicos), vão os selos que ganhei. Ganheio e roubei. Roubei de quem roubou de quem roubou, de quem ganhou, de quem ganhou, de quem ganhou...


1. Sabe de uma coisa

2. Afobório

3. Blog da Jana

4. Bloco das Nuvens

5. El Club Silencio

6. Digressões e Procelas

7. Pequena Cidade Âmbar

8. Arlequim

9. Cartolina

10. Olavo de Carvalho

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Outubro Laranja

As cigarras cantavam há muito tempo, mas não chovia em Brasília. Podia-se caminhar a pé pelo Eixinho, pelo Eixão, pelas W3, pelo parque, e algumas vezes se ouvia a música dos insetos bem de longe, mas se ouvia. Nada de chuva. Era o outubro mais quente dos últimos 10 anos, o que significava que se houvesse uma forma de destacar os outubros dos outros meses e colocá-los lado a lado, como uma coleção de inseto, esse talvez fosse o maior, mais forte e mais vermelho. Até o vento frio da madrugada era quente.

Caminhando pela Água Mineral podia-se ver em todas as árvores as cascas queratinadas de insetos que cresceram e abandonaram sua velha carcaça. Aqueles eram exoesqueletos de cigarras (olha elas ali de novo), que quando criança Artur gostava de usar como broche. “Olha, mãe, uma casca de bicho. Vou grudar um monte na camisa”, dizia. “Não seja nojento menino!”, respondia dona Vera sem prestar muita atenção. Era uma sujeira toda vez que a mãe o buscava na escolinha da Vivendo, na L2, no final do dia.

As águas nas encanações estavam quentes. A água do filtro estava quente. O Poço Azul era um verdadeiro oasis, bem como a piscina velha do Parque Nacional. Os animais se deitavam à sombra, enfastiados, olhando o mundo, esperando a vida passar. O asfalto gerava miragens, flamejava. Muito sorvete e água gelada. Todo o Distrito Federal queria chover, queria água, queria assentar a terra vermelha. Se sentiam em um filme daqueles de nordeste, de chão rachado, bem picaresco, que é para dar ênfase ao calor do lugar.

Foi quando caíram os primeiros pingos que Artur beijou Maria. Foi feliz. Caminhavam pelo estacionamento do Setor Comercial Sul, e os vidros fumês dos carros refletiam tudo como espelhos, cheios de gotículas agradavelmente molhadas, bonitas de se fotografar, que umedeciam a atmosfera abafada de um dos lugares mais movimentados de Brasília. Lá não se ouviam as cigarras, apenas os ambulantes, os motores, as buzinas (em Brasília não se usa buzinar). Estavam bem na frente, perto do Conic. A água estragou o sorvete da garota, mas ela estava focada em outra coisa.

- Você me beijou, gato!
- Eu sei.
- Agora não somos mais amigos.
- Somos, mas não somos apenas amigos.
- Hum... Você parece que sabe de tudo.
- É. Eu sei de tudo.
- Convencido...
- Você também sabia...
- É, mas não posso dizer. Sou menina.
- É menina. Minha menina agora.
- Você tem um beijo muito gostoso.
- Que nada, são seus lábios.
- Brega...
- Brega é você me chamar de "gato". A maior gíria dos anos noventa, gata.
- Ei!

Mas aquilo já era passado. Aquela garota molhada, a virgindade do rapaz, os seios pequenos, a cama e tudo mais. Até as noites de teatro e os círculos de discussão de Ariano Suassuna eram passado. Era o outubro mais quente do ano e ainda não havia chovido. O jovem biólogo caminhava pelo Pistão Norte, em Taguatinga, empurrando sua bicicleta com o pneu furado, e pensou que devia se livrar daquela casca velha, afinal, era hora de crescer, dar um passo adiante. Sentia que seria outro, e sua memória seria uma brincadeira de broche para algum deus criança que vagueia pelo Universo.

Mas uma chuvinha iria bem para acompanhar. Esse clima maluco de Brasília. Não era agosto ou setembro, mas dava para a cabeça doer de tanto sol. De repente alguém o abordou. Era uma voz angelical e sorridente. Voz de atriz. “Ei, bobão, eu cheguei ontem, sabia?”, ela disse. Ele olhou para trás.

- Maria?

Ela estava lá, com a mesma cara de palhaça, boa, infantil e mulher tudo ao mesmo tempo. Seis meses na França não mudam muito as pessoas, mas havia algo de diferente nela. Ela se aproximou e o abraçou. Ele largou a bicicleta e retribuiu. As formigas se agitaram com o guidom que derrubou a entrada do formigueiro. Uma brisa fresca varreu o lugar inteiro. O vento ficou mais forte. Nuvens tomaram o céu enquanto os carros passavam sem respeitar os pardais de trânsito. Um chuvisco fino começou a cair. Tudo era igual, só que era diferente.

- Podemos conversar, gato?
- Claro!

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Bom dia, boa tarde, boa noite e boa sorte

Seria engraçado se eu te mandasse um e-mail cheio de desaforos absurdos e ofensivos. Se isso acontecesse, ele atingiria a pessoa, no caso você, daria aquele prazer mórbido de ofender os outros, que eu não gosto de sentir, convenhamos, e ao mesmo tempo seria como se eu não tivesse mandado, já que você simplesmente evaporou como um perfume. Bonito isso, né? Não tão bonito quanto sua atitude. Sabia que as pessoas perguntam por você? Sentem sua falta? Quantos anos vc tem? Parece que uns três, no máximo. Você simplesmente desapareceu como se tivesse esse direito. E aquela história do Pequeno Príncipe, de ser sempre jovem, responsável pelo que cativa, etc e tal? Muita coisa mudou por aqui. Sei que você não vai responder isso como eu gostaria, simplesmente por falta de coragem, porque você é uma medrosinha, que se esconde atrás de filmes e nomes de artistas para fazer de conta que está com as pessoas. Muta gente deve ter precisado de você nos últimos tempos. Não é o meu caso, mas resolvi falar por elas. Sou auto-suficiente, esqueceu? Valeu mesmo. Uma menina fraca e assustada, que aposta suas fichas em relacionamentos amorosos? Brincadeira. Desculpe o desabafo. Esperava mais de você. Sei até que você tem mais poder, mas desse jeitinho que você age, sumindo do mundo há anos, não posso esperar muito. Você ainda tem amigos? Tem alguém para sair, conversar, desabafar? Uma galera pra trocar idéias e rir até? Tem alguém que te dê apoio quando as coisas vão mal com o namorado? Porque nenhum namoro é perfeito, né? Na minha opinião, inclusive, isso não é requisito de felicidade, mas cada um com seu quadrado. Só acho que você não devia ter sumido. É uma atitude que causa preocupação, que dá saudade, que traz infortúnio e gera repúdio. Quem é você? Quem disse que podia se aproximar? Por que sumiu? Acho que vou ficar com as dúvidas, não é mesmo? Mas tudo ok. Se resolver engolir a pedra da covardia, desabafar, xingar ou qualquer outra coisa, saiba que ainda te escuto, embora, e com razão, muita gente não faça mais isso depois do seu "misterioso" sumisso. Bom dia, boa tarde, boa noite e boa sorte.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Me apaixonei por uma puta

Sou um baita de um escritor. Preguiçoso pra caralho, mas um baita de um escritor. E não fui eu que disse isso, não. Foi meu professor de mestrado. Do mestrado que eu não terminei. Meus olhos ardendo de tanto cigarro. Sentado na cama, no meu apartamento. Com um pigarro desagradável grudado na garganta e cheio de beijos espalhados pelo corpo. Ela está nua, exausta, adormecida, com os seios redondos à mostra, com as marquinhas do meu dente. É noite e estou nu. Nada melhor que a próxima tragada. Queria inventar um movimento literário que mudasse o mundo. No entanto estou aqui, sentado nessa noite solitária, perdido em BH, recém-chegado de Brasília. Não consigo nem fazer o que me proponho diariamente. Sou idealista, escritor e fumante.
Se bem que tem um tempo que não escrevo nada. Pouco mais de dois meses. Nada para a internet ou para o jornal. Vivendo de bicos de fotografia, coisa que nem faço direito. Pensei que precisaria de uma paixão para escrever. Arrumei uma. Então vi que o melhor era uma desilusão. Arrumei uma. Então decidi que o melhor mesmo seria uma puta. Uma que viesse sempre, que fosse bonita e que eu pudesse pagar. Uma bem gostosa...
Acabei desiludido e apaixonado por uma puta. Uma puta chamada Clara. Universitária, loira, carnuda, com um bundão lindo, que balança quando senta no meu pau, que grita e tem orgasmos de verdade comigo. Que me ama, mas que sou obrigado a dividir com os outros. Enfim, estou amando uma puta. E putas são difíceis. São muito sensíveis e delicadas. É complicado trepar de verdade depois do décimo cliente da semana. Ela te vê pouco. O dinheiro que dou a ela é o da nossa casa. Sexo eu não pago mais (ao menos isso). Pois é. O corno mora na casa da vaca, não é mesmo.
Mas isso não é importante. Na verdade, me sinto meio niilista. Nada é importante agora. As luzes da cidade, o trânsito na capital dos botecos, as ruas confusas e cheias de nomes do País, a favela, o posto de gasolina com os punks e hardcores... Nada parece importante. Nada é tão convidativo quanto saltar de cabeça do décimo andar para sobreviver deformado como um desenho bizarro, encarando as pessoas nas ruas, como um lixo que repete para cada olhar: “Eu sou você”. Pus, carne em estado de putrefação, mau cheiro e mau hálito para todos! E não ligo se o certo for “mal”.
Me apaixonar por uma puta, beber cerveja e fumar compulsivamente acabou não adiantando muito para mim, como vocês podem ver. Estou sentado na cama, fumando, com o pau mole, sujo do gozo dela, com aquele cheirinho característico. Agora estou desiludido, amando uma meretriz, quase como uma vítima ingênua do naturalismo literário, viciado, tossindo após cada corrida, e sem a maldita inspiração. Esqueci de dizer que também devo o aluguel. A inspiração também é uma mulher foda. Foda com ph, dois Ós, dáblio, dois dês e “A” craseado no final (Phoowddà), isto é, difícil mesmo. Preciso pagar um tributo para ela me deixar escrever, e ela ainda pensa três vezes. Olhando lá pra fora, com uma deusa usada e esgotada ao meu lado, imaginando quando esse inferno vai acabar, procuro as letras na minha mente.
Qual é o meu problema? Acho que acabo fazendo muito parte de minhas histórias. Parte dos meus personagens. Fico repetindo medíocre o que todos querem escrever, que todos já escreveram, que todos já disseram. Eu não quero dizer nada, fico querendo dizer tudo, como um poodle que corre atrás do pompom do rabo cortado. Quero contar a verdade, que ninguém vai saber, nem vai ler, porque todo mundo sabe, ninguém quer saber.
Para mim resta a morte, a obliteração. Escritor não lido parece que nem pessoa não existida. Não é perfeito, mas não tem defeito. Tem erro de português. Escreve errado. Escreve como se fala, como se pensa, como se vê, como se cega, como se segue. Se acha gênio, mas é macaco. Meu apartamentinho bacana, com um quarto, uma cozinha, uma TV, um computador, livros espalhados para fazer de conta que sei de tudo e uma gata deliciosa zanzando, é tudo o que tenho. E tudo se alinhava com o planeta, esse imenso ser humano azul que nada sozinho em alto mar.
Seria bom mesmo se o mundo tivesse mais uns sete dias. Só sete. Depois tudo fosse para o espaço. Queria ver todo mundo se fudendo, se matando, morrendo, roubando, trepando sem camisinha, promovendo o pandemônio (adoro essa palavra – pandemônio), fazendo aquela faxina. Muita overdose, fezes e corpos espalhados pela rua. Se todo mundo ficasse sabendo que o mundo ia acabar e resolvesse fazer tudo o que sempre quis, que desse na telha. Se todo mundo apertasse o reset no último minuto para jogar com desespero os últimos quarenta segundos.
Aí, com o mundo escroto mesmo, com morte, suicídio, assassinato, estupro, cachorro morto, e com a moral na lama, amoral, o oitavo dia podia nascer normalmente. Isso sim seria uma boa história. Quantos ainda seriam os mesmos de oito dias atrás? Seria bom fazer isso comigo mesmo para saber como eu seria.
Mas no fim, não estou tão mal. Amanhã recomeço a escrever meu livro. Tenho meio artigo pronto para mandar pra revista, que deve render um extra, já que o freela virou fixo e o fixo virou freela, e sigo minha trilha torta de rounin. Fumando, trepando, escrevendo e apagando. E a Clara vai trabalhar. Vocês não sabem de nada. Que gatinha. Loira do olho azul, com peitinhos grandes, gostosos, que cabem na boca mas sobra bem pouquinho, com pernas grossas, branquinha, toda sedutora, felizinha como um texto pornô de revista masculina, e amorosa comigo. Com uma xota molhada que lava a mão da gente e que engole gostoso. Que foda. Que linda, dormindo aqui com meu esperma escorrendo na sua perna. E eu ainda tenho que dividir...

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A carta

Tenho um sonho que se repete. Nele os envelopes sempre chegam vazios. Por que? O que significa esse sonho? O que significam todos esses sonhos? Por que eles estão me influenciando? Nunca liguei pra essas coisas. Essa conversa de psicanalista, de significados. Nada disso. Não dou dinheiro pra essa corja. Um sexozinho e tudo está resolvido. Mas não tenho apetite mais. Logo eu, que sempre tive tudo que precisei. Meu pau é grande. Meus pais nunca se divorciaram. Meus avós morreram quando eu já estava grande. Sempre tirei boas notas. Passei no vestibular de primeira. Montei uma agência de publicidade com a migos que deu certo em apenas seis meses. Tenho troféu de futebol, de torneio de karatê, de maratona da matemática, boletim de faculdade recheado de “A”. Tenho dinheiro, casa, carro, computadores... Moro em São Paulo, em Higienópolis. Sabe o que significa morar na porra de Higienópolis? Não tenho mais o que querer. Fiz contrato milhonário, vamos ganhar um prêmio, namoro modelos gostosas de TV. Lanço modelos gostosas de TV. Elas querem me dar. Aquele quadrilzinho magro se debatendo em você... Aquele gemido agudo e superior. Agora não consigo nem trepar. Não consigo mais dormir. E quando durmo, o mesmo sonho. A mesma desgraça de sonho que está me deixando louco. Nuvenzinha, céu azul, brisa batendo na cara... É uma ilha não sei onde, com várias casinhas coloridas. Não quero. Não quero isso. Não consigo segurar minha mente. Que escroto. Uma das casas é minha. É uma vila de pescadores. O que diabos eu estou fazendo em uma vila de pescadores? Pescar o que? meu avô pescava. Eu não. O carteiro vem do horizonte, de barco, remando, sem suar, de roupinha amarela e chapéu azul, desce, caminha até minha caixa de correio, me olha sorrindo como se soubesse exatamente quem sou, não diz uma palavra, deposita a carta na caixa e vai embora como veio. Sinto medo dele. Só uso segurança porque a empresa hoje exige, mas tenho medo da merda de um carteiro magro de olhos claros da bosta do mundo dos sonhos. A carta é de alguém que espero muito. Nunca me apaixonei. Quer dizer, só uma vez, mas era um moleque. São notícias importantes. Tem muito amor em tudo. Meu coração salta. preciso daquilo, daquelas palavras que eu não sei quais são. preciso daquela solução. Não sei quem é essa pessoa no mundo real. Há muita ternura em tudo. Ternura, dá pra imaginar? Coisa de boiola, de viadinho, de fracassado. Vejo tudo da janela. Depois saio. Ele já foi embora. A visão ainda é a da janela, que no começo era em primeira pessoa. Pego a carta. Estou muito feliz. Ela estálacrada. Está escrita em rosa. Posso sentir o peso do papel. Parecem ser umas três páginas. Eu abro ali mesmo, ansioso, e está vazio. Desespero. Desespero. Está vazio. Não tem porra nenhuma lá dentro. Nada. Quem medo, meu deus, que medo. Um envelope vazio. Olho ao meu redor. Espalhados pelo chão, diversos envelopes vazios, rasgados, voam com o vento, boiam nas ondas ou são soterrados pela areia. Nunca consigo ler. Etou tão só. Os envelopes sempre estão vazios. Vazios. Do lado de dentro, somente as dobras brancas do papel. As casas estão destruídas, pela metade, podres, carcomidas pelo tempo. Eu estou sozinho em uma ilha deserta. Sabem que eu estou lá, sozinho. Porra! Sabem que eu estou lá sozinho. Eu recebo cartas. O carteiro não fala comigo, não me leva de volta, só fica trazendo essas cartas da pessoa amada que não conheço. De outro lugar do mundo. As correspondências vêm vazias. Onde diabos estão as cartas? Quero lê-las. È só o que peço. Uma vez alguém me disse que era impossível ler nos sonhos. Podíamos ate definir gurpos de letras de acordo com nosso subconsciente, mas não lemos. Minha cabeça não para, não se cala. Não quero acreditar. Ouço uma espécie de interferência de rádio, é um barulho vazio e silêncioso que não me deixa dormir. O que será que estaria escrito. Será que haveria como ler. Outro dia bati em um estágiário. Outro dia expulsei uma prostituta de luxo de uma festa aos berros e pontapés. Os acionistas me afastaram dos eventos. Bati meu carro. A porra de uma BMW. Bati em um viado de fusca. Vou ter que pagar o conserto de um fusca. De uma caralha de um fusquia fodido. Eu já fui o melhor. Não saio de casa há uma semana, não durmo há três dias, não tomo banho há quatro, fico só olhando pela janela. Não quero sair. O barulho do trânsito... O maldito barulho do trânsito. Não me traz respostas. Por que não me traz respostas? Por que? Por que? Por que? Não sei mais o que fazer. Só consigo pensar nos envelopes. Sonho com eles. Abro os olhos. É um pesadelo. É um pesadelo depois do outro. Mas não é um pesadelo, é um sonho. Não. É um pesadelo. Só pode ser. Estou ficando louco. Nunca liguei para sonhos. Quantas vezes vou ter que repetir isso para mim. Envelopes vazios. Envelopes vazios e um misterioso carteiro. Nada de buzina, de viagens, de cinema e restaurantes caros, nada de jogos internacionais, nada. Não quero mais nada. Não quero putas, não quero xoxotas, não quero nada. Queria apenas sonhar que o envelope estava cheio, e saber o que e quem me escreve. Queria poder dormir. Mas não posso. Os envelopes estão vazios. Se dormir, o carteiro vem entregá-los. Vazios estão os envelopes. Não durmo e não atendo a telefonemas. Não ouço música... Não ouço nada.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

El tango del jaguar

Caminho sobre os trilhos do trem. Como um mendigo. Como um indigente. Mas minhas vestes são razoavelmente novas. Não estou tão sujo. Mas essa é a atitude. Desci do vagão do trem, e agora, guiado pelo caminho de aço, caminho em meio a mata, sob a luz das estrelas. Algo que nunca fiz antes. Conto tudo em pensamento para meus parentes, que vão se horrorizar, que nunca entenderão. Sou novo no ramo de viagens improvisadas. Como um qualquer, um revolucionário, um louco andarilho, um poeta medieval, caminho sobre os trilhos do trem. Sou um felino de grande porte, um pássaro carniceiro, um caçador alado, um espírito livre. Eu mesmo sou a assombração. Sou a terra seca, vermelha, ou molhada, marrom, grudando na sola dos sapatos. Vivo nos anos 70, 80, 90, 00, e tenho apenas 20, apenas 30 anos. Não conheço a vida.

O vento frio começa a fustigar a nossa pele. Meu amigo segue em silêncio um pouco mais atrás. Guarda seus pensamentos em direção silenciosa. Faço de conta que posso ouvi-lo, enquanto presto atenção no som dos seus passos. Ainda não sei quando vou parar, mas sei aonde vou parar. Posso ouvir a respiração dele. Estamos concentrados no ato de caminhar, como vagabundos iluminados. Meus pés doem. Minha garganta está seca, mas meu estômago está cheio. Eu poderia ser um fugitivo. Poderia ser encontrado por um ladrão, por alguém de má índole. Perdido na mata, podia ser vítima de animais e assombrações, de doenças e loucuras. Poderia assassinar meu companheiro de viagem, ou ser assassinado por ele. A única coisa que nos separa disso é o que nos faz acreditar que estamos separados disso.

Vindos de Brasília, semi-burgueses, cansados, com dinheiro no banco e sem nada no bolso ou nas mãos, questionadores, levianos, puristas, turistas, solitários, seguimos. Caminho sobre os trilhos do trem e penso em meus familiares, em minha infância, em meu último emprego, no meu último chefe. Tenho vontade de matá-lo. Penso em minha namorada e nas brincadeiras de infância. Sempre fui muito imaginativo. Sou um soldado perdido. Eu e meu camarada nos perdemos de nosso batalhão em um ataque. Nossa missão é sobreviver. Estamos em um país inimigo, cansados, com medo, mas valentes e patriotas. As selvas vietnamitas de Minas Gerais cortadas pelo trilho do trem, são nosso único escudo, e ao mesmo tempo nos desnudam. Unidos, seguimos.

Preciso mandar um e-mail quando chegar à próxima cidade. A bateria do meu celular acabou. Preciso de uma cerveja gelada, de um violão, de música, de mulheres. Preciso de um bloco de notas e uma caneta. Penso. Penso, logo caminho. Penso nela, nua, sobre mim, devagarzinho, ou dominada, vítima, com as pernas presas. Penso em outras, sorrio, não penso, sou levado a pensar. Um produto inócuo do meio. Nada mais. Vil, invejoso, consumista, egocêntrico, impulsivo e temerário. Nada mais. Valente, filósofo, escritor, determinado, esperançoso e idealista, nada mais. Espanhol, latino-americano, brasileiro, peruano, caucasiano, cristão, judeu, budista, muçulmano. Nada mais. Aqui, esquecido por Deus, sob os olhares atentos das constelações de novembro do hemisfério sul, não sou ninguém, tal qual Odisseu. E assim como o ardiloso grego navegava, guardadas as devidas proporções, sobre os trilhos do trem, caminho.

Gosto da palavra “inócuo”. Também gosto da palavra “determinação”. Gosto de várias letras também. Em especial o “M”, de “Maria”, o “J”, que tem pingo, mas não é “i”, e o “G”, que é a primeira letra do meu nome. Meu andar está trôpego. Meus pés se jogam para frente e meu corpo para as laterais, em zigue-zage. Meus olhos pesam. Meu amigo caminha como eu. Um pouco pior. Ainda falta muito. Podem ser dias. Espero que não. Ainda é o primeiro dia de caminhada. A mochila já está pesada. Devem ser 23h. Não. São 23h45. Ainda é cedo, mas estamos cansados. Já chega. Vou parar. Vamos armar o saco de dormir ali. Tem que ver se não tem cobra. Se um trem passar de madrugada, vai nos acordar. Que se dane. Aqui. Ainda tem aquele suco? Me dá um pouquinho. Tenho miojo e rizoto. Vamos de rizoto. É, isso é engraçado. Não, acho que não. O Cruzeiro não chega lá. Perdemos. Espero que as frutas não apodreçam. Arruma o fogaréu. Vou preparar uma fogueirinha também. Também acho. Que a próxima cidade não esteja longe. Da próxima vez, só de carro. Nada de carona clandestina. Ainda é cedo pra falar. Muito bom. Você vai ligar para ela? Vou também. É uma situação delicada. É engraçado. Meu pai veio da Ucrânia, mas a mãe dele é brasileira. Jã morreu. Não Meu outro avô é que é da sérvia. Não sei. Sou um típico jovem de Brasilia. Foi aquele árabe lá. Comédia. Isso está gostoso. Vamos comprar mais. Quando chegar no Sul eu vejo. Não sei se quero ir à Argentina. Vamos ver até lá. É. Isso aí. É só se ajeitar. Afonso? Já está dormindo. É verdade. Boa noite...

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Astrofísica

Um filósofo e uma artista plástica conversavam amigavelmente na Piazza Della Signoria, em Firenze, na Itália. Eram turistas e foram apresentados por amigos em comum em um coincidente encontro entre os grupos. Acabaram se vendo juntos, diante das estátuas greco-romanas da esplanada, enquanto falavam sobre a vida e sobre o que os motivava. Ele, de olhos verdes, jaqueta jeans, guia de visitas debaixo do braço, cabelos curtos, negros, com uma protuberante careca no cocuruto, brasileiro, estava mais empolgado. Ela, portuguesa, prima de um amigo do primo do cunhado do brasileiro, com cabelos loiros, olhos negros, mais baixa e mirrada, com casaco verde e blusa vermelha, de saia preta até o joelho e com frio nas pernas, ouvia mais, e se encantava com aquele terreno fértil que era a mente do homem que encontrara. Sentaram-se no café da praça para conversar, enquanto os grupos se dispersavam em direção à Ponte Vecchio.

- Pres’tenção... A velocidade média do som é de 340 metros por segundo, isto é, 1.224 quilômetros por hora.
- Sei...
- A da terra é de 108.720 quilômetros por hora, mais ou menos. O que quer dizer cerca de 88 vezes a velocidade do som.
- Ah! O Mach, não é isso? Caramba, seria Mach 88. Seria quebrar 88 vezes a barreira do som.
- É! E tem um caça, o Mikoyan-Gurevich, é o MiG-25, que vai a uma velocidade um pouco acima do Mach 3. Não sei se ainda é, mas já foi um dos mais rápidos...
- Deixa eu ver... Isso dá, eu acho, não sei se os cálculos estão certos, mas dá 3.672 quilômetros por hora, calculados em um guardanapo.
- Você fala português quase igual aos brasileiros.
- Eu morei lá um tempo. Em Brasília Dos cinco aos dez anos mais ou menos.
- Eu sou de São Paulo, mas morei em Brasília, e só nos trombamos na Piazza Della Signoria... Engraçado. Mas então, o caça mais veloz não chega nem perto da velocidade do movimento de translação da terra em torno do sol. E uma bala de fuzil, sei lá de que tipo, uma vez me disseram, sai da arma a aproximadamente 900 metros por segundo, o que deve dar, em quilômetros por hora o equivalente a 3240.
- Nossa! Quase a velocidade de um MiG...
- Mas não vemos a bala, e vemos o Mig, por causa do tamanho dele, assim como achamos que o Sol se desloca devagarzinho no céu, enquanto, na verdade, giramos bem rápido em torno dele. Agora imagine você, um objeto com massa equivalente a 6 sextilhões de toneladas a 108.720 e poucos quilômetros por hora por aí, passeando. Acho que se ele tivesse o tamanho de uma cadeira, por exemplo, não sei se conseguiríamos vê-lo. Uma esfera que pese 3 quilos, na velocidade de translação da terra se chocaria contra um muro com uma força de 542160 Newton, eu acho. Essa é a Terra navegando ao redor do Sol. E olha, seis sextilhões é um número seis seguido de 21 zeros! E a velocidade da Terra em metros por segundo é de 30.200.194.
- Cruzes! Quanto número... Mas pode continuar, estou acompanhando... Uma pêra com massa equivalente a 6 sextilhões de toneladas a 30.200.194 metros por segundo, uma velocidade que não conseguimos imaginar.
- Ainda não sei direito aonde vou chegar. Até porque essa conversa está viajando a uma velocidade muito alta.
- Concordo...
- Vamos mais longe então... A velocidade de rotação da Terra, medida na linha do Equador, é de 465 metros por segundo. E para entrarmos em órbita, precisamos alcançar uma velocidade de 28.000 Km/h, no meu ônibus espacial.
- No seu ônibus, sei...
- Muito mais rápido que um MiG ou que a bala de um fuzil, convenhamos.
- Certo.
- E a Lua realiza seu movimento de translação em torno da Terra a uma velocidade de 3600 km/h, e demora pouco mais de 27 dias para completar sua órbita ao redor do nosso planeta, sendo que o nosso diâmetro é de 12.756,2 quilômetros. Se nós fossemos o Sol da Lua, o ano seria bem curto, mais rápido que um mês para os terráqueos.
- Para os terráqueos...
- Do que você está rindo?
- Não estou caçoando, estou achando graça. É interessante isso tudo.
- É que me empolguei. Agora veja isso: um ano em Marte equivale mais ou menos a um ano e onze meses na terra, e lá, teríamos quase a metade de nossa idade.
- A metade da idade! Gostei!
- Mulheres... Você teria quanto, 12?
- É, mas seria do jeitinho que sou agora.
- E mais uma coisa, a luz viaja a uma velocidade de 300.000 quilômetros por segundo. Não faço idéia de quanto seja isso em quilômetros por hora, mas dá para ir à Lua várias vezes em pouquíssimo tempo, já que ela está a 384.400 quilômetros de distância. Dizem que é o que dirigimos em toda uma vida.
- Não brinca! Dá para viajar no tempo! Você olharia para trás e veria sua imagem olhando para trás. Seriamos energia pura. E a velocidade da luz em quilômetros por horas, vejamos... Pelos meus cálculos, seria 1.079.913.606,91 quilômetros por hora.
- Isso é o que viajamos em um vinte e quatro avos do dia. Somos energia pura. Somos partes condensadas de uma infinitamente espessa nuvem de átomos galácticos. E sequer temos noção disso. Existem mais espaços vazios entre os nossos átomos que espaço preenchido por eles em nossa massa e na de qualquer objeto. Sendo assim, por que diabos não atravessamos paredes?
- Ta legal, essa foi a cantada mais legal que já ouvi...
- Isso porque eu ainda não comecei a comparar esses números com os mitos e com essas fantásticas estátuas.
- Que lugar bonito, que cidade maravilhosa. Em pensar que isso tudo é um pozinho do universo.
- É solitário.
- É mas estamos juntos. Como dois corpos celestes de anos luz de diferença em suas origens, que se chocam energicamente.
- Mas na hora do choque, parece que você sofre uma influência gravitacional de algum planeta da consciência, e desvia...
- Mas ainda estamos sobre a influência de nossas órbitas. Talvez mais tarde...

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Um suspiro antes da queda

15 de agosto de 2014, 23h46, redação do Correio de Brasília.

- Se for assessor empurrando pauta vou mandar para aquele lugar! Peraí que já atendi aqui... Fabrício Gonzaga.
- Oi lindo!
- Maren?!
- Queria ouvir sua voz.
- Já falei para não ligar na hora do fechamento! Ta corrido pacas aqui, e depois você fica achando que não te trato bem...
- Desculpe... Eu só queria saber se você vem...
- Não... Esquece. Desculpe... Acho que sim... Peraí. É que às vezes fica puxado aqui, e eu perco a cabeça. É bom ouvir sua voz. Pode falar...
- Como ta aí?
- Tá foda. Tô com aquela pauta do MP até hoje...
- Caralho, Fabrício! Cadê a porra do info-gráfico?! Já mandou os textos pro pessoal? Não chegou ainda.
- Tá com a arte! Já devia estar pronto. A matéria já foi pra gaveta, é só puxar aí! Então, o que você ia dizendo? Como foi o dia?
- Foi tranqüilo. Ajeitei as coisas para a publicação, os fotógrafos mandaram os arquivos de imagem. Vai ficar bonito. Quero te mostrar a formatação hoje a noite. Se você puder passar aqui em casa... Eu aproveito e te mostro... outras coisas... Posso te esperar? O que acha?
- ...
- Fabrício? Ta aí?
- ...mostrar as fotos do livro... Tô ouvindo, linda. É que estou lendo um e-mail aqui. Ca-ra-lho! Vou ter que alterar a matéria pela quarta vez, amore. Você acredita? Os caras não se decidem... Odeio trabalhar com o Ministério Público. Uma semana com essas matérias de merda que mudam cinqüenta vezes por dia na hora do fechamento!
- Mudei um pouco o lead do texto. Pode mandar pra paginação? Pode mandar pra paginação, Fabrício?! Fabrício?!
- Não, chefe! A assessoria mandou um posicionamento novo. Vamos ter que mudar a retranca. E tem uns dados novos também. Eles conseguiram os valores dos prejuízos do governo com o patrimônio público destruído.
- Como é que é? Porra! Que merda! Vou te mandar a matéria de volta então...
- Tá. Mas e então, amore, você conseguiu as fotos e deve lançar o livro? Legal! Quando posso ir aí para ver? Aproveitava para te dar um beijinho.
- Esse jornal não fechou até agora?! Cadê a arte pessoal?! Se vocês não fizerem alguma coisa a respeito vou derrubar a porra da matéria! Não quero saber!
- Eles mudaram tudo. Já tava tudo pronto... Não é culpa nossa, chefe!
- Pô, Fabrício, não ta me ouvindo, né? To te chamando pra vir aqui pra casa hoje e você não ta me ouvindo.
- Desculpa, o editor chefe tava falando com a gente aqui. Não ta dando pra ouvir tudo, mas fala assim mesmo. Ta movimentada a redação, linda... Acho que vou pirar... Não vejo a hora de terminar a pós e dar aula. Largar de vez esse mundo de jornal diário. Chefe, o pessoal da arte mandou o infográfico para a gaveta! Devolve lá que eu vou alterar o último tópico e já mando o texto para eles!
- Já devolvi!
- Mas então, você vem hoje? Posso ficar te esperando...
- Putz. Peraí chefe... Ta aqui. Mudei só uma parte do texto. Não precisou mudar tudo. Só troquei uns dados ali e inseri um parágrafo.
- Fabrício?
- Vou dar uma cortada então. Já mandou o texto para a arte?
- Fabrício?
- Já mandei. Peraí... Oi?
- Tem certeza que eles não pegaram esses dados?
- Lindo, ta me ouvindo?
- Tenho. A assessora me garantiu que é exclusivo. Pode por na capa que vai ser furo.
- Fabrício!?
- Oi!
- E aí, você não respondeu, vem ou não vem?
- Vou, mas chego tarde. Aliás, melhor não. Amanhã o dia vai ser tranqüilo. Amanhã eu vou. Aqui, chefe, te encaminhei o e-mail.
- Recebi aqui. Já estou lendo.
- Linda? Alô? Porra, desligou.
- Era a mulher?
- Minha namorada... Cacete. Vou acabar levando um pé na bunda.
- Amanhã você vem só na parte da manhã. Aproveita e junta a tarde com o final de semana. Olha só isso aqui! Brasília é um ovo de codorna mesmo... Essa assessora é filha da minha namorada de faculdade...
- ...
- E aí, ele vem?
- Não, não vem.
- Bom, sobra mais tempo pra nós.
- É...
- Não fica assim, depois você fala com ele...
- Só acho que isso não é direito. Estou me sentindo uma escrota.
- Ele não é pra você. Além do mais, está trabalhando contra nós. Senta aqui do meu lado... Quer falar sobre isso?
- Não. Vamos mudar de assunto... Mmmmmm...
- Vem cá, deixa eu tirar isso...
- ...

sexta-feira, 25 de julho de 2008

48 graus

Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1992.

- Nome?
- Maria.
- Quantos anos você tem?
- 19.
- Quanto você pesa?
- 56 kg.
- Tipo sanguíneo?
- “A” negativo.
- Certo... Seu diagnóstico é febre. Se importa de tirar a roupa?
- Não.
- Tire a blusa e desabotoe a calça. Isso. Sente-se na maca, por favor. Qual é o seu problema, Maria?
- É essa febre, doutor, que nunca passou.
- Vamos ver isso.
- ...
- ...
-...
- 48 graus! Você parece tão bem. Vamos ver isso? Dói aqui?
- Não.
- E aqui, sente alguma coisa?
- Normal.
- Vamos ver os seus olhos... Certo.
- Me sinto bem, doutor.
- Uma febre nessa altura pode causar sérios danos ao seu corpo, aos seus neurônios. Nunca ouvi falar de alguém que sobrevivesse até essa temperatura.
- É minha temperatura normal. Nunca me atrapalhou. Mas, socialmente, incomoda bastante. Não sei o que fazer. Todo mundo pensa que eu estou doente, que eu sou doente. Já fui a vários médicos, que tentaram várias coisas...
- Exame de sangue?
- Esta aqui. Espere. Aqui. Pronto.
- Umhum... E de urina?
- Este.
- Você fuma?
- Fumo e bebo.
- Com que freqüência mantém relações sexuais?
- Não sei. Semanalmente, acho. As vezes mais, as vezes menos...
- De fato, seus exames não indicam nada. Já os fez quantas vezes.
- Várias. Nem sei.
- E o que você sente?
- Não sinto nada. Sinto que minha pele está quente. Mas não sinto calor. Nem sinto muito frio também. Para mim é normal, como eu te falei. Mas meu corpo é muito quente.
- Em todo o corpo? Ou tem alguma parte que é mais fria?
- Em todo o corpo.
- Já teve alguma doença?
- Só reação alérgica. Camarão. Não posso comer camarão.
- Levante-se, venha para minha mesa. Não sei como te dizer isso, mas você é um caso a ser estudado. Ninguém vive muito com essa temperatura, mas você parece ótima. Seus exames não apresentam nada. Não há muito que fazer.
- Obrigada doutor. Queria apenas me livrar disso. Ser normal.
- Você é normal. É uma garota inteligente. O que faz da vida?
- Sou atriz.
- Minha mãe também era atriz.
- ...
- Acho que sei qual é o seu problema.
- Sério? Qual?
- Você sente isso desde que nasceu?
- Sim.
- É atriz há quanto tempo?
- Isso importa?
- Talvez.
- Cinco anos.
- Então é isso. Só pode ser isso.
- O que?
- Você é uma estrela, mas não brilhou ainda. Dedique-se um pouco mais a sua profissão. Tenho certeza que isso vai mudar quando colocar essa energia para fora. Qual sua próxima peça?
- O Pequeno Príncipe. Serei o aviador.
- É um bom papel. Talvez te ajude. Aqui está a receita...
- 15 horas de teatro por dia? Ser platéia uma vez por semana? E esse último, não entendo a letra.
- Não tem problema. Quando você começar a brilhar e sua temperatura baixar, vai acontecer mesmo.
- O que é?
- Dê tempo ao tempo. Vá brilhar, estrela. Sorte sua eu ser filho de atriz, não?
- Obrigada, doutor. Vou fazer como o senhor mandou.

Maria saiu do consultório achando estranho, mas já havia feito tanta coisa, que não se importou em cumprir as tarefas. Além do mais, ela gostava tanto de teatro, que não faria a menor diferença. Ela se dedicou muito, com afinco. Esqueceu-se da temperatura de seu corpo, que nunca baixou, e foi feliz. Um certo dia, em Brasília, em visita ao Complexo Cultural da República, flanando, pensou: “O que faço é a lente que me faz ver o mundo. Sou o que faço, faço o que sou. Algumas lentes convergem o sol. Deve ser o caso da minha. E meu sol é o personagem por trás do personagem...”

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Sonetos

Desistência
Estou cansado dessa vida,
Cheia de desgraças alheias,
Dessa minh’alma puída,
Cheia de feridas feias.

Estou suado, estou sujo,
Sinto a raiva no meu estômago,
Meu coração caiu em desuso,
Sem direção vou caminhando.

Mas, assim, não vou desistir,
Não é de minha índole patética,
Minha ação será destruir,

Tudo o que chamo de estética.
E do meu governo destituir,
Aquilo que penso ser ética.


Metalingüística
As vezes não termino,
Minhas próprias poesias,
Ficam sozinhas sem um fim,
Em eternas romarias.

Quase nunca consigo,
Concluí-las com efeito,
E fico lendo e relendo,
Trocando os versos sem jeito.

Nem sempre consigo,
Completar um soneto,
As formas que instigo,

As palavras que prometo.
Sou meu próprio inimigo,
Na composição do texto.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Estranho

Não é o que parece,

Não foi o que seria,
Não partiu na hora exata,
Não chegou aonde ia.

Não era bem assim,
Não era bem assado,
Não era como ela,
Não era de outro estado.

Não pediu para vir,
Não pediu para ficar,
Não pediu para partir,
Não queria mais estar.

No entanto prosperou,
Prevaleceu, no estopim,
Na hora que todo mundo disse não,
Só ela me disse que sim.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Sob velhas árvores, em um novo lugar

No Oriente Médio, a guerra era uma constante. A miséria e as ditaduras africanas pareciam vivas e alegres, a psicose brasileira dançava a musica que a psicose norte-americana cantava. Pais seqüestravam e matavam os próprios filhos, e nada mais era assustador. O mundo seguia e o país neutro ia junto, fazendo de conta que não estava ali, igual à juventude de Brasília, tudo meio que se arrastando, como o inofensivo princípio de uma avalanche mortal.

A cidade de Zurich unia o velho e o novo, e todo lugar era lugar de ler. A mentalidade era fantástica. Tudo era limpo e corretamente angulado, apesar de mecânico, até a gentileza em alemão e italiano das pessoas. Quase não se via algo escrito ou falado em inglês. Os jovens eram corados e bonitos, e até os loucos e os mendigos eram elegantes. Tudo como em um conto de fadas. Dava vontade de ficar por lá, Antônio pensava. Ficar com aquele trânsito, aqueles campos e aqueles olhos azuis que enchiam todas as avenidas. Assim era a bem iluminada cidade, ou cantão da Suíça. Como seria então a Noruega, ele se questionava.

No fone de ouvido, Bob Dylan repetia que a resposta tinha ido embora com a ventania, e as pessoas na calçada, ou às margens do lago, rolavam na grama e almoçavam salada, peixe ou salsichão alemão. Não havia muito o que dizer, e nem um conhecido com quem comentar aquela maravilha de lugar. Ele também não ficaria muito, pois ainda tinha de ir à Holanda e Alemanha. O clima era ameno na primavera. A busca, no entanto, não se detia pelo encanto personalístico com os lugares, afinal de contas, aldeias indígenas eram tão chamativas quanto a velha cidade, antigo recanto Celta. A busca do homem pelo sentido fundamental da vida, que não estava expresso em nada do que se via fora nesses tempos.

Antônio colocou sua imensa bagagem no gramado e sentou-se sobre a sombra de uma árvore para descansar. Começava a cochilar quando uma menina tipicamente suíça sentou-se sorrindo para ele. Finalmente encontrara, ou, na realidade, fora ele achado, por quem havia ido ter para continuar sua busca pela montanha mais alta. Maren tinha o símbolo dos escaladores tatuado no pulso, como lhe fora falado, e cabelos lisos de um preto azulado que ele não fora capaz de imaginar, e o jovem espanhol, de barba loira e olhos amarelos, robusto e de pernas grossas, parecia estar, de fato, diante de alguém diferente dele, e que tinha o mesmo objetivo. Ela se sentou, eles se deram bem a primeira vista, e ela tinha levado salada para ambos. Não se deram aos formalismos, eram escaladores, irmãos, discípulos, e já se conheciam, embora se vissem pela primeira vez.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

À mãe

(Luiz Calcagno)

O bebê que está aí,
Que cresce dentro de você,
O filho da vida, da ânsia do mundo,
A vida miúda que se afigura,
Essa santa criatura,
Pude ver pelo aparelho, era tão miúda,
Como pode tanta luta,
Para vir a ser o que será?

É o sorriso do porvir, com suas próprias unhas.

A mãe,
Ela também sofreu.
Carregou o rebento e todas as expectativas,
E a menina criou raízes em seu ventre,
E despontou novinha para um mundo atraente.
As cores, os sons, as flores e os dons,
Nasceu um novo universo e a natureza já não pode ser mais a mesma,
As fadas cantaram no quintal e a criançada gritou pela sobremesa.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A praia das ilusões...

Ventava e fazia frio. Hermes estava sentado sobre a canga de Maria, na areia da praia em volta da fogueira, com os pés descalços. Era uma noite sem estrelas no Havaí. Só se podia ver as espumas brancas do Oceano quebrando na costa. O resto se confundia com a escuridão do céu. O barulho, a canção tranqüilizadora e repetitiva da maré cheia era o pano de fundo para as conversas da trupe. Afonso e Ednarla estavam abraçados, conversando e brincando com as mãos, Tobias dedilhava a esmo o violão e Marisa dormia na mochila do músico. A chama crepitava e trepidava como uma salamandra raivosa, e refletia no olho do soldado e da médica, que se encaravam mutuamente, cada um de um lado do fogo. Ele contava sua história. Os outros ouviam. Principalmente ela.

- Meu pai era espanhol e minha mãe americana. Nasci em Bolder, no Colorado, mas passei boa parte da minha infância no Brooklyn. Aos doze ganhei um torneio de karate local e um velhinho amigo de meu pai pediu que ele o deixasse me treinar nas artes marciais. Foi aí que começou minha carreira militar. Meu velho, que vê o mundo bem diferente das outras pessoas, a contragosto de minha mãe, deixou que ele me levasse para longe. Passei cinco anos fora de casa, e quando voltei, fui praticamente direto para o quartel. Passei oito meses na minha velha rua, apenas. Fiz algumas visitas aos coroas enquanto treinava, bem esporádicas, e, por mais que a situação me revoltasse a maior parte do tempo, até porque não entendia a proporção daquilo, eu sabia que me fazia mais bem do que mal.

- E como foi que ele te treinou?
Perguntou Afonso desinteressadamente. Hermes olhou para as chamas por uns segundos, olhou novamente para Maria, de olhos grandes, pele negra e cabelo encaracolado, fitou o céu e então continuou.

- Para começar, não aprendi tecnicamente a dar um único golpe. A princípio, na verdade, me pareceu que não. Mas depois, no exército, me destaquei facilmente em tudo que fiz. Achei, sinceramente que estava sendo explorado, escravizado, no início, mas depois vi que era loucura minha. Acontece que passei dois anos e meio trabalhando de lenhador. Fazia só o bruto. Era pequeno, foi difícil no começo, mas fui pegando corpo, força, aprendendo os macetes, e logo o trabalho pegou ritmo. Eu me tornei rude, e as vezes ajudava os fazendeiros da regiam a segurarem vacas que pariam e outras coisas. Foram dois anos e meio. No final, era quase perfeito. Como comecei cedo, foi mais fácil evoluir no processo, julgo. A noite tinha aulas sobre temas do mundo de uma forma bem mais profunda que vemos nas escolas, e melhor, sem provas ou exercícios. Um dia cortei uma pilha de madeiras com tanta disciplina e perfeição que meu mestre me passou outro trabalho. Ele disse que eu havia cumprido a primeira parte do treinamento. Naquela época eu já estava confiante, embora não soubesse ao certo aonde aquilo ia me levar. Morávamos em uma choupana isolada. Era tudo muito simples. O velho era mexicano, e nunca me disse seu verdadeiro nome. Todos o chamavam de O Mais Velho, e o tratavam como um líder, um pai, um médico e um conselheiro, e tinha gente que dizia que ele tinha mais de duzentos anos. Tinha ou tem. Não sei ao certo. Depois que voltei não consegui mais entrar em contato com ele, mais por força das circunstâncias. Mas gostaria sinceramente de vê-lo e mostrar o homem que me tornei.

- E qual foi o outro trabalho?
Maria perguntou. Hermes queria acabar com a conversa e beijá-la ali mesmo, mas adorava contar aquela história, e continuou. Todos sentiam o clima entre os dois, que eram os únicos descomprometidos na turma de viajantes que se reuniu por acaso em uma praia havaiana.

- Bem... Tudo era muito humilde mesmo. Ele vivia com o mínimo do mínimo. Eu só tinha permissão para beber e comer se realmente estivesse com fome e sede. No início tinha que sofrer um pouco para ele acreditar. Depois eu me adaptei a disciplina e ele passou a confiar mais em mim também. O fato é que tudo era muito pobre e simples, exceto uma cristaleira antiga. Era uma peça delicadíssima, linda, toda feita em vidro e cristal, com pequenas partes de pedras coloridas encrustradas, também muito sensíveis, e que mudavam de cor de acordo com o clima. Era tudo frágil, mas equilibrado, e era cheia de louças, porcelanas, taças em estantes de espessura muito fina. As portas eram de vidro com dobraduras de madeira delicadamente abraçadas ao material e o fundo era de espelhos que confundiam os olhos dos admiradores. As peças eram dispostas com pequenos bonecos mitológicos astecas pesados, de ferro, entre elas. Cada um tinha seu lugar exato para manter o equilíbrio do todo, e apesar de ser tudo tão exuberante e belo, e delicado, que eu sequer ousara me aproximar desde que cheguei à casa, era muito sujo e empoeirado. Meu próximo trabalho, depois de ser o melhor lenhador da região, e o mais novo também, era limpara diariamente toda a cristaleira, e dispor novamente cada peça em seu equilibrado e devido lugar com a mesma maestria com que foram colocadas antes. E, obviamente, sem quebrar nada.

- Que loucura!
Ednarla comentou. Hermes sorriu.

- Foi difícil, claro. Mas consegui não quebrar nada. Por mais limpo que ficasse, no entanto, no dia seguinte estava suja como em um conto de fadas, como se eu nunca houvesse limpado. E eu tinha que começar o delicado serviço novamente, do zero, o que, quando peguei o jeito, durava cerca de doze horas para se concluir. Em geral, de seis da manhã ás seis da tarde, quando tinha aulas de geografia, história, filosofia e religião, dependendo do dia. Depois de dois anos e meio fazendo isso, um dia, pela manhã, não encontrei as prateleiras ou as peças sujas. Apenas o senhor, sorrindo, dizendo que eu tinha uma prova. Ele me levou para um desfiladeiro que tinha uma corda que ia da beirada até uma arvore alta. A prova era ir até a metade do caminho e voltar se equilibrando. Cair, obviamente, significava morrer nas pedras ou no rio lá embaixo. Ele fez uma vez o trajeto, bem rápido, para me mostrar como devia ser. E eu fui tremendo em seguida. Até a metade, eu me equilibrei, mas se devia ser como ele fez, foi um fiasco, mas quando me virei, pareceu que condensei e compreendi tudo que o velho me ensinara. Foram cinco anos em cinco segundos, e voltei como se andasse normalmente aqui na praia. Tudo valeu a pena por aquele breve momento, e aquele breve momento fez com que tudo valesse. O resultado disso, não vou me alongar, é que fui o melhor fuzileiro do exército americano em Serra Leoa, sem a menor dificuldade, sinceramente.

- E como podemos saber se é verdade? Como podemos saber se você não está só inventando tudo isso?
Maria perguntou com um ar de desconfiança. Nisso, Hermes debruçou-se para frente, com uma mão na areia gelada e outra no fogo, na brasa, e beijou a jovem. Quando a menina percebeu a posição do rapaz, apesar de retribuir o beijo, sobressaltou-se como se estivesse diante de uma aberração. Ele sorriu quando seus lábios se separaram. Ela ofegava olhando a mão do rapaz. Todos estavam chocados, menos Tobias e Marisa, que tinha acordado no fim da história, e que já conheciam o rapaz. Ele voltou para o seu lugar sobre a canga da jovem médica. Seu braço não tinha sinais de queimaduras sequer nos pelos. Por outro lado, a areia onde ele apoiara a outra mão fumegava. Maria se lembrou então do curandeiro que tirava balas de corpos com os dedos, sem agravar a situação dos pacientes, que se curavam mais rápido que se tratados em meios tradicionais, no Peru, no começo de sua carreira, e foi atrás de Hermes, que havia se levantado para por os pés na água.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Terra mãe

(Luiz Calcagno)

Ah, Portugal,
Portugal dos Açores,
Portugal dos meus amores,
Dos meus risos, de minhas dores,
Ah Portugal!

Terra Lusitânia,
Em tua gente não há infâmia,
E a mim todo, tu me ganhas,
E me perco em tuas vielas tamanhas,
Ah, minha eterna Lusitânia!

A poeira que te cobres,
O pó que te revestes,
As pedras que te tomam,
As histórias que te vestem,
Os pés que em ti caminham,
As jovens que se despem,
A gente que em ti se abriga,
As idéias que te enaltecem...

Ah, Portugal de todos os tratados,
De navegações e entardeceres dourados,
Ah, Portugal dos que não foram amados,
Das virgens cálidas e dos filhos Bastardos.
Em ti, encontro minha história,
Aqui contemplo meu passado.

Ah, Portugal,
Portugal dos Açores,
Portugal dos meus amores,
Dos meus risos, de minhas dores,
Ah Portugal!

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Sobre trilhos e trens...

No trem, bem como no carro, a paisagem italiana se perfilava diante de meus olhos. Mas agora eu já tinha um conhecimento maior do local, ou, melhor dizendo, eu já interagia com ele, ou me sentia, de alguma forma, parte daquele universo, mesmo que apenas como viajante. Castelos sobre cidades, o novo que parecia velho e a poeira histórica corriam em meio a campos abertos enquanto pessoas de todas as nacionalidades, com o correr das horas, ocupavam os bancos do vagão, e não era mais tão confortável me espalhar no lugar. Meu tênis sujo de terra de sítios arqueológicos descansava ao lado de meus pés de meias brancas.

As árvores eram belas, bem como o mato verde na manhã pálida em que ocupei tão confortavelmente o vagão de segunda categoria daquele velho trem. Fomos os primeiros a entrar, depois do maquinista e do fiscal dos tíquetes, claro. Ainda nem havia amanhecido quando arrastamos e carregamos nossos pertences pelas confusas ruas de Roma. O silêncio era a testemunha do caminho até a estação. Foi também naquele dia que senti a delícia que é viajar interminavelmente, embora já viesse fazendo isso há muito. O mundo é mesmo imenso a cada centímetro, bem como o tempo é longo segundo a segundo, bem como uma caminhada começa com o primeiro passo.

De tempos em tempos passávamos por túneis bizarros, e cruzávamos uma montanha por dentro, e sentíamos a pressão em nossos ouvidos. Era quase como ir às profundezas do Hades, mas não éramos sábios o suficiente para perceber. A escuridão era meada por corrimões laterais irregulares que serpenteavam a toda velocidade como imensas serpentes enquanto a máquina que nos levava parecia parada, e feixes de luz corriam pela janela no sentido contrário.

Sentado no banco azul, munido de um computador de colo e um livro emprestado sobre um velho poeta, com as bagagens sobre a cabeça e a barba por fazer, fui tornando tudo ao meu redor, e tudo que eu havia visto antes, ruínas e fontes, castelos e igrejas, túmulos e jardins, parte de meu ser, ou de minha personalidade, não importa muito. De qualquer forma era inspirador e maravilhoso. Era como sentir o mundo inteiro dentro do peito, e aquele comum vazio, aquele balão que apertava o coração parecia não estar mais lá. Era uma alegria ver passar trailers, tratores, ferros-velhos em meio ao nada e estradas solitárias que eu ousava sonhar um dia passar.

Aos poucos o sol subia no céu, a Terra girava, e a vegetação viva e dourada me lembrava de meu país, e eu sabia com certeza que amaria muito mais, mais como mátria ou frátria que como pátria, as terras Tupiniquins depois de ver as sombras e ouvir os sussurros do meu passado remoto. No entanto eu não ansiava voltar. Ainda não era hora e, na verdade, eu gostaria de ter ainda mais tempo que realmente tínhamos. Seria bom poder ficar uns seis meses rodando o mundo, e talvez mais. Mas a mim sobrava a esperança de ter novas oportunidades no futuro. Sabia, ao menos, que queria ver muito mais

Obviamente que voltaria a sentir a angústia da existência sem respostas em breve, mas não seria mais como antes, pois, naquele momento, no vagão, eu me transformava, e não me sentia aparte no universo, e era tão bom... Além disso a convivência com os camaradas de viagem nos tornava uma espécie de irmãos-primos, e era cômodo se alojar ao lado de um deles. Líamos, ouvíamos música, escrevíamos e conversávamos, isto no trem, enquanto a bruma da manhã, aos poucos, sumia como sonhos em um dia solitário de outono. Tínhamos pouco tempo, o que era muito, e muito a ver, o que era pouco, e o acima estava abaixo e o abaixo estava acima, embora isso, não fossemos capazes de ver, esmo diante de nossos narizes.

Nos quartos, cruzávamos nossas pernas, alongávamos nossos músculos e ríamos e descansávamos. Assuávamos os narizes, escarrávamos na pia e tirávamos nossos tênis. Nem sempre estávamos realmente juntos, nem sempre estávamos bem uns com os outros, nem sempre estávamos e felizes e dificilmente entendíamos tudo o que estava acontecendo ao mesmo tempo. Isso, no entanto era comum nas horas de impacto, quando nos colocávamos diante de uma coluna romana, de uma estátua grega, de uma pintura renascentista, de um palácio templário ou de um sarcófago egípcio.

As cidades iam ficando na lembrança, os países iam entrando no sangue e na alma, novas palavras em outros idiomas ameaçavam entrar no vocabulário, e até um português com sotaque diferente era motivo para levantar as orelhas como um cão atento. E o passaporte, a cada aeroporto e fronteira rodoviária, ia ganhando novos carimbos e ficando velho e usado. Era uma identidade diferente para mim. Ele me permitia ir a outros países e, por isso, parecia mais importante que o registro geral da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Carros, aviões, trens e barcos nos levavam de lá para cá, e tudo isso era significativo enquanto o trem corria sobre os trilhos e os americanos conversavam qualquer coisa alguns bancos da frente. Nós ansiávamos por Firenze, ou Florença, como queira, e era incrível demais para se traduzir em palavras.

Raul Granado

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Janelas antigas

Todo sangue derramado, toda guerra e paz, todo tratado, todo navio lançado ao mar leva o homem a algum lugar que ele não espera chegar. O pai do pai do pai conta uma história aparentemente sem valor, que é, na verdade, o único motivo para eu ou você estarmos aqui, se é que realmente estamos, e não somos apenas ecos do passado que insistem em se repetir. As janelas são inúmeras, e estamos ligados a reis e escravos por uma inesperada rede de acontecimentos que nos insere indiretamente nos cursos mais inusitados da trajetória humana. Uma roda, uma lança de metal, o fogo, a arquitetura, as maquinarias, a caça, a produção, as navegações, tudo está co-relacionado.

Há 465 anos, Estevão, sobrinho de um influente cavalheiro Templário, era mandado junto a criminosos e prostitutas em direção à colônia, para fugir da fogueira. Sua irmã e amante, grávida de uma criança proveniente de um incesto, não tinha a mesma sorte, e era queimada em praça pública enquanto o rapaz navegava nas águas brasileiras. A chegada do homem, que se casou e fez fortuna, resultou em uma linhagem familiar amazonense sem consciência de seu próprio passado, que, por parte da mãe do avô do pai, deu origem a um tal advogado doutor Rodrigo Oliveira, nascido em 15 de dezembro de 1979, que sofreu, com a namorada, de uma gravidez indesejada que mudou o curso da vida da jovem para sempre, e o separou de quem ele acreditava mais amar no mundo.

Foi assim que um dia, do outro lado do Atlântico, em Portugal, Flávia abriu a janela e sentiu a brisa fria das manhãs primaveris do país lusitano. Sob a montanha descansava o colosso Templário de Tomar. A cidade crescera a muito ao seu redor, mas ainda era pequena se comparada às outras. A amiga de Flávia, Isadora, ainda dormia encolhida nas cobertas. Maria deveria estar na outra cama, mas fugira, na madrugada para o leito de Henrique, no quarto ao lado. Lá os meninos roncavam sob a tutela da escuridão, exaustos e enfastiados. Do lado de fora, vielas e becos antigos e coloridos pareciam ressuscitar com a alvorada.

A viagem estava valendo todo o esforço. Tinham dinheiro o suficiente para cruzar a Europa, e quando a situação apertava, nada que um violão e um chapéu velho não ajudassem. Arte é arte, como diziam. Haviam agora fundado a própria ordem: era a “Ordem dos Saltimbancos Introspectivos do Cruzeiro do Sul”, a OSICS. A idéia era a velha filosofia Cínica. Estavam procurando, o tal homem, visto como humano, ego, Ser, dentro e fora de cada um, como combatentes e beatniks.

O sol estava pálido atrás das nuvens. Como nascia voltado para a janela do quarto da pensão, deviam estar de costas para o portão do castelo. Ela começou a comer a granola que havia sobrado e pensava que teriam que fazer compras mais tarde, e dar um jeito de lavar a roupa suja, afinal, não é porque tinham inventado um caminho de aventuras que deveriam fugir de suas necessidades básicas. Na verdade era exatamente o oposto. Precisavam manter-se o mais civilizados o possível, e de uma maneira consciente.

Foi quando a vida de Flávia começou a saltar em flashes em sua mente. Ela tentou segurar a imaginação, quando o som do canto de um pavão ao longe fez com que a moça se rendesse e se entregasse a si mesma. São aqueles momentos consigo mesmo que evitamos tanto. Flávia mergulhou em suas lembranças, revivendo os primeiros instantes de mudança que a levaram a uma pensão européia com um grupo de universitários artistas de nacionalidades variadas. De fato, nem tudo o que parece o pior, é necessariamente ruim.

Tinha 19 anos, e agora estava com 20. Naquela época, em Taguatinga, no Distrito Federal, no Brasil, havia abortado um bebê, e deixou, após o choque, todos que amava para trás, e mergulhou em uma jornada em busca de um real sentido para a vida. Foi quando, sob a recomendação de uma colombiana circense, cujo nome era Solidad, encontrou o grupo de aventureiros orientados por um tal de Padre Belga, que ela não chegou a conhecer. Tudo parecia sem sentido visto dos olhos do cotidiano. Ela mesma já havia pensado nisso. E no fim se questionou: o que, de fato, é o cotidiano, qual é o seu valor, e porque seguí-lo?
A claridade começou a invadir o quarto com mais intensidade e força, e Isadora escondeu-se ainda mais sob o edredom. Então um carro atropelou a jovem que caminhava desavisada e cheia de fantasias após um exame de sangue. Acabara de descobrir que estava no terceiro mês de gravidez. Foi tudo tão rápido. O pequeno, ou a pequena, nunca se soube ao certo, mal chegou em sua vida e logo foi embora, causando um estranho buraco na alma da garota. Uma ferida chamada dúvida, e que nunca se cicatrizaria.

Isadora levantou-se sonolenta, vencida pela manhã, carregando o peso do próprio corpo, e se arrastou para escovar os dentes. Murmúrios vinham também do quarto dos meninos. A cidade colorida, lá fora começava a despertar também. A poeira de mais de seiscentos anos de história de glória, heroísmo e conquista seria mais uma vez pisada pelos alheios autômatos ambulantes do século XXI. Flávia segurou firme a barriga e tentou levantar. Apoiou-se com a mão direita no asfalto. Não sabia ao certo como havia parado ali. Saia sangue de sua orelha, ela podia sentir, e também havia sangue em sua garganta. O líquido viscoso saltou de sua testa para seus olhos. Um homem desceu do carro desesperado, pedindo para ela não se levantar. Ela disse algo sobre estar grávida e depois acordou limpa e enfaixada, em uma cama de hospital, com o coração do tamanho de uma ervilha, batendo forte ara manter seu corpo vivo. Seu neném não estava mais lá, e ela sabia disso, não precisou nem de perguntar. Mesmo assim a confirmação, to derradeira quanto a própria morte, não tardou, e não parecia justo.

Jonas entrou sorrateiro no quarto das meninas e sentou na cama de Isadora pensando em algo para falar com Flávia, mas não veio nada em sua mente. Ela deu mais uma colherada na granola, que estava em sua caneca com o galo português pintado, arrumou o cabelo dread castanho claro, viu que o amigo estava sentado ali, respirou e voltou a si por uns breves instantes. Nada do que escolhia parecia de fato verdadeiro naqueles tempos, exceto estar ali naquele quarto, com aquele menino diferente dos outros, que sabia de sua dor só de olhar, mas também sabia de suas alegrias, e via alem da perda mais que qualquer outra pessoa.

O plano era ir para Lisboa, mas parecia que iam perder o primeiro ônibus, ou autocarro, como chamam em Portugal. Ele então quebrou o silêncio, sorriu e falou português com aquele forte sotaque argentino: “Yo ainda tengo un poquito de mel, usted pode colocar no suyo cereal...” Flávia sorriu de volta, viu na simplicidade da vida do momento uma boa dose de humanismo sincero, que não estava nas palavras em si, mas em todo o resto do que permeava a breve conversa. Contemplou o cabelo anelado do jovem e seu sorriso e olhos verdes e nariz comprido como quem dissesse que sim, e o mágico africano, Topper, entrou no quarto sorrindo, com a boca suja de pasta de dente. No banheiro, ou casa de banhos, como preferirem, Isadora deu descarga. Um motor de caminhão roncou ao longe.

Há 430 anos, Um comerciante navegador alemão se casava com uma viúva que era irmã de um influente templário do Porto da Gália. A mulher havia entrado para o convento após perder seus dois filhos para o destino, mas o comerciante a convenceu de largar o hábito. O homem a conheceu na Torre de Belém, que, na época, funcionava como hospital. Ele havia sobrevivido a um naufrágio a alguns quilômetros do porto. Isso, Flávia não podia imaginar.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

El Condor Pasa

Corujas cruzavam alto nos céus, procurando as calhas e tocas em seus apartamentos, sobre os prédios retos e baixos da cidade. Muitas histórias, já em forma de sombra, em forma de fantasma, passadas a muito, se repetiam constantemente nas avenidas organizadas da cidade. Nas quadras verdes da W3 Sul, namoradas, amigos, futebol de asfalto, bete, e outras diversões brincavam de se repetir na calada da noite ou no vazio do dia. Crianças que foram pais e pais de pais, ainda gritavam sob os pilotis, e seus filhos, e os filhos de seus filhos. Gerações corriam entre si, sem se tocarem no entanto, em camadas de formas etéreas. Apartamentos, trancados ou não, sussurravam as músicas e programas de TV que passaram por ali.

Ao longe, uma banda punk reverberava na Colina, e seu fundador já nem existia mais. E os meninos mais novos, tentando repetir os feitos de seus antepassados do rock, também tocavam e cantavam no Setor Leste, no Elefante Branco, no Espaço Cultural da 508, e no extinto Gran Circo Lar, e depois outros tentavam repetir, e outros, em um constante eco. Meninos e meninas ricos zanzavam como zumbis fantasmagóricos, a esmo, pelo Gilberto Salomão, sem existirem. Feiras de artesanato sombrias eram visitadas pelo vento frio, seco e ululante. A ladainha artística e política ecoava distante, como uma música em um volume muito baixo, em bares de balcões abandonados e cadeiras sujas e solitárias.

Ainda se viam as pombas passeando entre o Conic e o Conjunto Nacional, e o chão sujo da rodoviária continuou sendo o caminho por onde as edições passadas dos jornais da cidade corriam ao vento. A feira da Torre, montada era o lar do cheiro de madeira e trabalho que já existiram um dia. O teatro, mais assustador que nunca, continuava imponente em seu formato piramidal, com um museu sem exposição e uma biblioteca sem livros para acompanhá-lo. Carros jaziam abandonados nos Eixos. Quando muito, um disparava o alarme, se ainda houvesse alguma carga na bateria, e exauria a energia do veículo. E todos os vidros da catedral estavam quebrados, e os sinos, enferrujados, se esfarelavam, fustigados pela ação do incorruptível tempo. Os ratos, gatos, cães, capivaras e macacos eram agora os donos desses lugares na cidade assombrada. Os matagais eram tomados de serpente e felinos selvagens caçavam nas entre e super-quadras.

Os ônibus vazios, com portas e janelas abertas, cheios de poças de água, bolsas, guarda-chuvas e casacos esquecidos, pareciam fazer do silêncio seu ronco matinal, hino diário de quem ia para o trabalho de condução. Os trens do metrô, à mercê dos trilhos inutilizados, também com suas portas abertas, pareciam repetir, segundo sobre segundo, aquela sirene estridente que avisa que quem ainda está na fila do cartão terá que esperar o próximo. E as estações, escuras e vazias, são receptáculos de poltergeists e criaturas peçonhentas. Lugares tristes sem seus varredores e seguranças.

Tudo tomou uma forma densa, envelhecida, tombada, que, acima de qualquer coisa, guardava bilhões de histórias da raça humana. Desde festas de natal à trágicos acidentes de carro. De casamentos a viuvez. Partidas e chegadas no Aeroporto e na Rodoferroviária, nascimentos no HRAN e enterros no Campo da Esperança. Amizades, assassinatos, atrocidades e altruísmos. O que der para imaginar. O que aqueles garçom, que eram donos de um restaurante de nome árabe, diriam sobre a situação? As escolas públicas, o prédio da 107 Sul, e os adolescentes que se beijavam, o que pensariam? Os vestibulandos, os calouros e os veteranos da UnB, ou do CEUB, os freqüentadores do Clube da Vizinhança e do, então, estático e nuclear, Parque Piton, o que fariam se vissem Brasília assim? Mas não estavam mais lá. Apenas seus pertences. Conservadas, porém sujas, peças arqueológicas. Roupas de malha, marcas, emblemas, toalhas, calções de banho, carros vazios e os restos mortais dos entes queridos que partiram primeiro, no cemitério.

Saudades dos meninos abastados e das meninas grávidas. Todos haviam desaparecido, mas como? Não havia mais o som dos carros correndo acima da velocidade permitida nos Eixinhos, a noite, para quem dormia nos prédios escutar. A gritaria da criançada que chegava da escola no final da tarde, a querida e cultivada frieza distante entre visinhos também não se repetia de fato. Nada disso existia. Ainda era a cidade, mas sem homens. A noite, os postes e os semáforos acendiam e piscavam tristes, esperando que a moçada invadisse os bares para festejar, a despeito de qualquer lei que o governo criasse em nome das associações de moradores amargos.

Nem você leitor poderá saber disso, pois já está desaparecendo, e agora, não é mais que um fantasma que se debruça sobre uma maquinaria inútil, repetindo apenas, os gestos que fez em vida, acreditando piamente que está aí, sem, no entanto, estar. E no final de todas as ruas, onde todas as pistas se encontram, o Congresso e a Praça dos Três Poderes parecem sorrir e dizer, feliz 348 anos, Brasília.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Cosmogonia de fundo de quintal

Isabelle pensava no universo enquanto retirava as roupas do varal. Enquanto guardava sutiãs e calcinhas imaginava (como bióloga que era) que a natureza nunca fez nada que não fosse objetivo, prático e funcional. O que se tornava obsoleto, a evolução devorava. Foi assim com parte de corpos e até com espécies inteiras. As indagações de Jonas a levaram a refletir sobre isso. Ele era um pensador. Realmente não é necessário algum diploma para entrar em contato com a Criação.

O rapaz desenhava as plantas do jardim como se ilustrasse um antigo livro de botânica. Era o seu hobby. Jonas era escritor, formado em jornalismo e estudante do que chamava de "tudo". Enquanto agachava desajeitado, com a prancheta em mãos e os olhares atentos, provocava a noiva. - Por que pensamos? Por que nos perguntamos quem somos e de onde viemos? Que traços evolutivos são esses que nos levam a perceber detalhes muito além dos meramente físicos? - Isabelle ouvia em silencio e com atenção. Com seu noivo era mais fácil pensar nessas coisas.

Para Isabelle, Jonas estava certo. Ele havia encontrado o mistério que anos de laboratório não revelam. A capacidade de amar o conhecimento, a faculdade de filosofar não só não foi eliminada pela mãe de todas as coisas,como foi aperfeiçoado no correr das eras. Uma joaninha tem pintinhas pretas, um pássaro, plumas amarelas, um lagarto, língua comprida, um homem, imaginação. - É verdade Jonas. Damos significados a tudo. Se não o fazemos conscientemente, o fazemos inconscientes. É a nossa natureza.

Jonas terminou de detalhar um tomate e sentou-se sobre folhas secas deixando a prancheta de lado. Isabelle terminou de recolher as roupas e as guardou numa bacia em cima de uma mureta que dava passagem ao quintal. Uma aranha caranguejeira atravessou furtivamente o chão da área de serviço. Ele levantou uma pedra e miríades de insetos deslizaram sobre o chão para todos os lados. Ela passou a mão sobre a barriga que amadurecia um filhote ainda celular, que seria num dado momento uma menina.

O homem concentrou-se num tatu-bola que parece não ter percebido o apocalipse de seu universo. Isabelle soltou Kali, a labrador caramelo da casa, e a cadela correu feliz pelo jardim,fazendo o ragnarok das aves e de outros pequenos animais que visitavam o estabelecimento. A aranha entrou debaixo da máquina de lavar roupas. As nuvens encobriram o céu e uma réstia de sol feneceu sobre os traços no papel. - Vai chover querido. Vamos para dentro. - ela disse virando as costas. Ele enfiou o lápis no bolso da bermuda e a seguiu.

Isabelle entrou sorrindo, pensando em qual seria o seu propósito no universo. Jonas entrou pensando em qual seria a relação entre a forma do tatu-bolinha e dos planetas que vagueiam pelo espaço. Kali latiu e passou correndo pelo casal, entrando na casa. A chuva apressou suas gotas e engrossou seu caldo. Eles pregaram o desenho junto com os outros na parede da sala, um mural artístico quase infantil, e foram fazer os trabalhos que tinham levado para casa. O tema da próxima semana seria gestação.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Aquário

Leleo e Lili eram um casal radical. Ele fazia engenharia, e ela era recepcionista. Ele era negro, ela era loira, e nenhum dos dois ligava muito para o que a sociedade diz sobre ter e ser, e sobre viver como “manda o figurino” do teatro da vida moderna. Não eram hippies, não se apegavam a partidos políticos e evitavam grupinhos. A ânsia que aproximava a ambos era a vontade de fazer de suas vidas um benefício pra a existência de todos os planetas, o que não é possível quando se fica preso na politicagem matuta e infantil do reitor da universidade ou do presidente do Brasil.

O casal era feliz, e se, para isso, como um excelente formando em mecânica, ele precisasse abrir uma pequena oficina suja de graxa no interior mais interior possível de Pernambuco, ele abriria. Se, para permanecerem juntos ela precisasse de se formar em medicina em Oxford ou qualquer outra dessas “grandes” universidades repugnantes, ela se formaria. Que bom, no entanto, que não seria preciso. Poderiam, até mesmo, viver rodando o país, fazendo uso de seus pequenos conhecimentos para levar a vida. Quem, afinal, disse que posses, que casa e cachorro, piscina e meninada são indispensáveis para a felicidade? E não eram pessoas alheias a tudo, embora pudessem parecer. Lili e Leleu eram bem mais atentos que a maioria. Isso porque se ligavam à outros detalhes, realmente fundamentais, que eu ou você não somos capazes de ver, pois só sabemos querer e reclamar.

Lili, Eliza, mais precisamente, não havia terminado o segundo grau. E daí? E daí, nada. Não havia terminado e pronto. Qual era o problema? Isso não fazia dela uma pessoa menor. Muitos, no entanto, a viam dessa forma, como um cargo, como uma função, como uma maquinaria barulhenta que obedecia às ordens dos outros. Como o robô dos Jetsons que ficava na renomada “bal, bla, bla” empresa fulana-de-tal, e que era “claro”, facilmente substituível. Uma boa dose de auto-conhecimento, amor e força de vontade, no entanto, deixam na lama qualquer diploma. No mais, ela já preparava tudo para o dia em que iam ficar realmente juntos, para sempre juntos. Sonhava com o dia que iria trançar suas madeixas loiras no peito negro do amado, cansados no final do dia, felizes e satisfeitos com o simples fato de terem, mais uma vez, visto o sol nascer, ouvido o cantar dos pássaros e o latir dos cães e dado muito duro em suas funções.

Leleu, isto é, Leandro pensava como ela. Gostava muito do curso, mas o fazia só porque entender as variáveis dos seres máquinas e seus inúmeros elementais e seres viventes do mundo da ignição, das roldanas, porcas, manivelas e alavancas. Era como se fizesse, por exemplo, biologia, só que com as máquinas. No fundo, para ele, era a mesmíssima coisa. E era maravilhoso, também, ficar deitado no telhado com sua garota, olhando para o céu, sorrindo para aquele imenso moto-contínuo perfeito que girava psicologicamente sobre a cabeça dos amantes, dando a impressão da existência dos dias e das noites. Era um filósofo, e ela, a menina simples que atendia os telefonemas e usava malhas nas horas de folga, sua guia mis experiente, embora ela não pensasse nisso.

As famílias de ambos também eram curiosamente complicadas. A mãe de Leleu achava que ele merecia coisa melhor que uma recepcionista, enquanto o pai dele se preocupava constantemente com as ânsias de vida do garoto, com suas tão peculiares ambições, e se lamentava pelo jovem não pensar de um modo “correto”, como ele. Enquanto isso, a mãe de Lili acreditava que ela devia agarrar aquele homem e não soltar mais, pois era sua oportunidade de vida. O pai não se importava muito, afinal, o menino tinha dinheiro. E no fim, era bem difícil dizer com precisão quem era pior, afinal, bem no fundo, por trás de um absurdo de preconceitos que nem sonhamos, pois somos dotados deles e os vemos como virtudes, eles apenas amavam suas crianças e queriam vê-las crescer bem. Uma situação naturalmente aceita, já que se tratava da prole de ambas as famílias. Para a mãe, a fêmea, afinal, tinha o macho que a protegia, e o ancestral, no caso de Leandro, via seu descendente seguir passos diferentes, e temia não sabia se a linhagem seria mantida com sua devida pompa, afinal, a força hoje é o ter mais até que o poder. Enfim, era tudo amor, mas equilibrado em uma tênue linha de instintos de procriação e perpetuação da espécie que são indignos para os seres humanos, mas que, afinal de contas, ninguém liga.

E foi assim que um dia partiram. Ele não retirou o diploma, não pensou nisso e nem soube por que. Apenas o fez. Concluiu o curso e pronto, deram as mãos, compraram um carro para lá de acabado, consertaram, reformaram e estilizaram e escreveram atrás “recém-nascidos”, se é que me entendem, amarraram latinhas irritantes, e foram embora buzinando, com alguns trocados no bolso e muita alegria no coração. Onde gostassem, parariam para ficar, mas tinham um roteiro que ninguém soube. O mundo podia acabar, a terra podia tremer, o que conhecemos hoje como sistema poderia finalmente ruir, e nos poupar mais alguns séculos de absurdos sofrimentos desnecessários, afinal, quando nada for como acreditamos, acima de tudo, o ser humano continuará sendo ser humano, e isso é o que importa.

E os netos de Leleu e Lili, se eles vierem, vestindo roupas simples, com famílias pequenas e organizadas, em uma amável comunidade local de onde eu não sei, darão continuidade à perpetuação do amor e da condição humana, e olharam par o céu com aquela deliciosa sensação de reminiscência, de que se está contemplando algo que já era belo há 1000 vidas, e pensaram no homem, na inteligência do universo e no seu reflexo divino em nossos trabalhos, e a nova era será de amor e paz depois que as águas de Aquário passarem.