terça-feira, 19 de outubro de 2010

"Ceci n'est pas une pipe"

Rude estava sob o efeito da anestesia gasosa e adocicada do hospital. Mãos plastificadas cortavam e reviravam seus músculos. Ele quase podia ouvir. Ele quase podia ver. No fim de tudo restaria uma vaga lembrança, como se aquele momento na sala de cirurgia fosse um estranho sonho que lhe deixasse pontos no joelho e um movimento da perna a se recuperar com o tempo. Paralelamente às impressões, parte de seu cérebro sonhava, ou, quiçá, despertava, no momento da dormência dos sentidos, quando a alma pode enfim ter um pouco de lucidez. Não há como descrever exatamente as figuras, símbolos e sons que a alma produzia no entorpecer da muralha da existência física, mas era algo como ver diretamente os seres humanos suspensos e perdidos. Ou no melhor estilo René Magritte: "Isto não é um cachimbo". Isto não é o Planeta Terra. Este não sou eu. Esta não é uma mesa de cirurgia e isto não é um computador. E então milhares de botas em pernas de calças caqui marchavam compassadas reproduzindo trovões, ondas: "Vlam! Vlam! Vlam!", um passo depois do outro. Então a muralha foi crescendo, e crescendo, e crescendo, até que suas pálpebras se abriram em um fôlego afoito e profundo e ele sentiu a maca fria e o lençol grosso, e ouviu o barulho do monitoramento do próprio coração. Uma voz feminina, provavelmente de sua mãe ou de uma enfermeira lhe perguntou: "Acordou?". Ele compreendeu: "Não".

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Eu não existo

"O Sertão vai virar mar,
e o mar, sim, depois
de encharcar as mais
estreitas veredas,
virará sertão"

Antônio Conselheiro


Quando entrei no quarto de meu avô, o enigmático senhor Flory, naquela hora da madrugada, senti exatamente o mesmo cheiro que sentia quando criança, ao entrar na casa velha de Lavras, no sul de Minas Gerais. Todas aquelas madeiras antigas e rijas, recobertas de pó. O cheiro emanava da cama de meu falecido avô, e da cadeira quebrada encostada ao lado do estrado, que também estava encostado na parede. O plástico velho do assento se dobrava à fragilidade das juntas quebradas. Sentei nela aos três anos e eram fortes como um jovem à época, mas não resistiram aos solavancos e meu crescimento e do meu irmão, e do meu outro irmão, e do outro, e do outro, e do outro. Tudo aquilo me lembrava a cidade natal de meu pai. O quarto cheirava a alguma coisa que só então reconheci. Era o mesmo cheiro que Aureliano Babilônia deve ter sentido ao ler as últimas páginas dos pergaminhos de Melquíades, pouco antes da cidade dos espelhos, ou das miragens, ser varrida pelo vento. Era exatamente o cheiro da ventania que leva tudo o que existe e que se transforma em pó. Aquele era o cheiro da passagem do tempo, e nunca me dei conta. Literalmente debaixo do meu nariz. Ai de mim, que queria ser Peter Pan, que queria voar, lutar contra piratas, beijar Wendy e não envelhecer nunca, enigmático senhor Flory. Quando eu nasci você já era velho. Parece, em minha existência, sempre ter sido velho. As histórias da sua juventude remontam a Força Aérea Brasileira nos meados da Segunda Guerra Mundial. A mim, dessa triste batalha, só restam livros de histórias e relíquias de museus. Em contrapartida você nos deixou móveis antigos e uma folha de jornal. Meu avô é a Segunda Guerra Mundial. Brasileiros versus fascistas. Naquela hora olhei para os lençóis dependurados no varal do lado de fora, iluminados pela luz que fugia da janela, e imaginei um fantasma ou uma criatura maligna e bela entre os panos, me observando sem que eu pudesse percebê-la. Ninguém acredita, mas ela está mesmo lá. O véu sempre esconde a verdade. O véu da personalidade, o véu do tempo, o véu da noiva, o véu de Isis. Então caminhei apressado. Não mais que quatro passos para sair daquele quarto vazio que outrora, antes da queda do enigmático senhor Flory, era quase que como um templo, onde eu, neófito da vida, acólito da inexperiência, só entrava se autorizado, e mesmo assim, em silêncio, e não me demorava, padrinho. Estava tomado pela angústia. O sono não me vinha. Sentia vontade de fumar, de caminhar pela rua, de me transformar em um fantasma. Subia e descia as escadas. Enigmático senhor Flory, o senhor se deitou sem permissão. Ainda me lembro que meus lábios tocaram os seus e soprei meu alento para dentro de seu peito, imaginando que isso pudesse te trazer de volta. Ainda ouvi um gemido ao pressionar teu tórax em busca das batidas de teu coração, como quem cava à procura de um tesouro. Coisa que nunca contei a ninguém. Seria apenas um reflexo físico do ar que fugia de teus pulmões mortos mas, mesmo assim, pensei que fosse voltar comigo. Desde então o furacão voltou a ficar forte, e forte, e forte, e só agora começo a compreender que a tempestade que arrasa minha vida é esta mesma do Tempo, que vem soprando, matando e pulverizando tudo, cada vez mais rápida. Quisera eu ter olhos para todos os livros e imaginação para todos os contos. Mas sou só um homem atrasado que anda pela vida. Cheguei atrasado. Quase um mês depois do previsto, acho. O velho era o homem que sempre fora velho. Pena nunca ter alcançado suas manifestações, nunca ter subido alto o suficiente para ver, ainda que de longe, a luz dos seus pensamentos, para que eles iluminassem os meus agora. Um coração bate no meu peito. Tu-tum, tu-tum, tu-tum. O ar entre e sai dos meus pulmões. Meus nervos trabalham incessantemente, 24h por dia. Enigmático senhor Flory, foi assustador te ver deitado no chão, e não em sua cama, com os olhos vazios e esbugalhados, e a boca aberta e sem dentes. Quem esperava? O tempo. A morte. Castañeda sabe que ela está à nossa esquerda, a um braço de distância, esperando o último segundo para tocar nos nossos ombros. Se olharmos de relance e percebermos uma sombra, é ela. Tudo é passageiro, tudo é ventania, tudo é Macondo. Deus, leve-me embora de Macondo. Então chove e chove e chove. Volto à realidade. Sento diante da máquina de escrever e escrevo. A morte, bela e doce, fuma sentada à minha janela. Que pernas. Finalmente fumo um cigarro. Não sei ao certo o que é real e o que não é. Parece que ainda ouço aquelas palavras ao telefone. Giro o disco para chamar alguém. Parece que atravessei a última linha, em silêncio, como o soldado que caminha nas terras inimigas, mas sempre com a fronteira ao alcance da vista, como um navio português que contorna a África a caminho das Índias, sempre com a costa à esquerda. Respiro aliviado. Me sinto mais tranqüilo. Parece. Apenas parece. Enigmático senhor Flory, que sou eu, de onde venho e para onde vou?

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Estrela longíqua

Estrela longíqua
(Luiz Calcagno)

De um riso-pranto,
Dez milhões de Sóis,
R136a1.
Duzentos e sessenta e cinco vezes
Maior que o astro rei,
Errê, cento e trinta e seis "a" um.

De um brilho-olho,
A maior estrela do universo,
R136a1.
Que se alimenta assim,
do teu riso-pranto,
Errê, cento e trinta e seis "a" um.

Inclculável distância,
Iluzório trajeto,
R136a1.
Estás em mim,
Quando me olhas com teu brilho-olho,
Errê, cento e trinta e seis "a" um.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Querido Caronte,

“Se pode olhar, veja. Se pode ver, repara"
José Saramago

Saramago é autor de obras como Ensaio Sobre a Cegueira, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e Intermitências de Morte. As obras que compôs inspiraram contos e poesias deste blog. Morto por falência múltipla dos órgãos, na manhã dessa sexta feira, aos 87 anos, a literatura mundial perdeu um grande nome. Como todos os grandes homens, a profundidade do escritor talvez só seja realmente notada muitas décadas após o minuto exato desta publicação. Exijo, barqueiro, que transporte-o com as honras que ele merece. Que este epitáfio possa servir-lhe como moeda para a travessia. Leve em conta que poucos enxergaram o ser humano como ele, nesses tempos de cegueira branca e falta de lucidez. Segue o discurso proferido pelo escritor em 1997, quando recebeu o título doutor honoris causa pela Universidade de Brasília (UnB). O texto também está no site de universidade. Viva uma nova literatura! Ursos e Ornitorrincos a todos! Meu mais sincero adeus.

O Caderno de Saramago


"Magnífico Senhor Reitor da Universidade de Brasília, Ilustres Professores, Estimados Alunos, Minhas Senhoras, Meus Senhores

Decidiu generosamente a Universidade de Brasília, sob proposta do seu Departamento de Teoria Literária e Literatura, conceder-me o grau de Doutor «Honoris causa», por pensar haver no trabalho literário que venho realizando méritos suficientes para tal, o que, obviamente, não me compete a mim confirmar ou pôr em dúvida, limitando-me tão-só a relativizá-los, não por uma modéstia congênita ou por uma deliberada prudência táctica, mas por uma atitude de espírito que já se me tornou em segunda natureza. Autorizo-me porém a crer que se cheguei a este acto com a legitimidade de quem a ele foi expressamente convocado, não me apresento de mãos vazias. Trouxe comigo algum trabalho, alguns livros, idéias, reflexões, o melhor que em uma vida já longa pude ir inventando e fabricando, uma ponte de palavras por onde intento chegar aos meus leitores e onde desejo que os meus leitores me encontrem, com a confiança, deles e minha, de que lá esteja e saiba estar, não apenas o autor, mas a pessoa real, o homem que sou. Não peço mais porque é o máximo que peço.

É conhecido o caso daquele moço que, sem nunca ter tomado aulas de belas-artes ou aprendido de mestres particulares, e não dispondo de melhor ferramenta que um simples canivete, em pouco tempo transformava um toco de madeira bruta no mais acabado e perfeito urso de que rezariam histórias da escultura se fosse objectivo delas ocupar-se de talentos rústicos e paisanos. Aos que se maravilhavam com a rapidez e o jeito, o rapaz respondia invariavelmente: «Não tem nenhuma dificuldade. Agarro na madeira e fico a olhar para ela até ver o urso. Depois é só tirar o que está a mais.» O nosso escultor ingênuo dava-nos, assim, duas lições: a lição da modéstia e a lição da generosidade. Revelava-nos o seu segredo de oficina e ensinava-nos como deveríamos proceder para criar um urso: olhar para onde ele não está e, apenas com o olhar, fazê-lo aparecer.

Mas, ai de nós, não há perversidade maior que a dos ingênuos. Este amável moço, tão prestante em explicar-nos como fez não deixou que lhe saísse da boca uma única palavra sobre como se faz. O urso está ali, vemo-lo, mas entre ele e as nossas mãos há uma muralha de madeira fechada, com nós duríssimos, veios intratáveis, traiçoeiras maciezas da fibra: é por de mais evidente que será preciso muito engenho e arte para abrir caminho. A arte, afinal de contas, não é fácil, o rapaz dos ursos esteve a divertir-se á nossa custa.

Contudo, bem descuidado seria quem se atrevesse a jurar que no interior de cada pedaço de madeira não há um urso à nossa espera. Há, e há sempre. Ainda que não consigamos vê-lo distintamente, ao menos devemos ser capazes de adivinhá-lo, de intuí-lo, aparece-nos ao longe como uma luz instável e lenta, um vago luzeiro, tão vago que mal chega a iluminar-se a si mesmo.

Assim foi como me apareceu também o que sobre uma presumível relação entre o antigo canto e um novo romance aqui me propus dizer-vos. Julguei perceber-lhe os contornos, tornar-se nítido e preciso o vulto, cheguei mesmo a pensar que me bastaria estender a mão e tomá-lo firme, mas no momento triunfal em que vou exclamar: «Minhas senhoras e meus senhores, aqui está o urso», verifico que tudo não era mais que ilusão e ludíbrio, e apenas tenho para apresentar isto que aqui se vê, um tronco cortado, um cepo, uma raiz torta. E outra vez a luz começa a pulsar, como um coração que chama: «Tirem-me daqui.»

Disse canto, disse romance, e essa relação, esse percurso, essa viagem por espaços, mundos e tempos, desde os poemas homéricos a Marcel Proust ou James Joyce, passando pelas Mil e Uma Noites, pelas epopéias indianas, pelas parábolas dos livros sagrados, pelo Cântico dos Cânticos, pelas fábulas milésicas, pelo Asno de Ouro, pelas canções de gesta, pelos ciclos de Roldão, da Demanda do Graal, de Alexandre, de Robin Hood, pelos Romances da Rosa e da Raposa, por Gargântua, pelo Decameron, por Amadis de Gaula, pelo Quixote, e também por Gulliver e Robinson, por Werther e Tom Jones, por lvanhoe e Cinq-Mars, pelos Três Mosqueteiros, pela Nossa Senhora de Paris, pela Comédia Humana, pelas Almas Mortas, pela Guerra e Paz, pelos irmãos Karamazov, pela Cartuxa de Parma, pelos Maias, por Braz Cubas, até agora, até aqui - essa viagem começou um dia, em voz e em grito, à sombra de uma árvore, ou no interior de uma gruta, ou num acampamento de nómadas à luz das estrelas, ou na praça pública, ou no mercado, e depois houve alguém que escreveu o que tinha ouvido, e a seguir veio alguém que escreveu sobre o que tinha sido escrito antes, ouvindo sempre, escrevendo sempre, dispondo palavras em silêncio, infinitamente repetindo, infinitamente variando.

Importa-me pouco a mais do que provável incoincidência desta visão lírica do trânsito histórico de narrativas entoadas, de melopéias, para uma escrita organizada e disciplinada, obediente a regras, a preceitos, a normas, a convenções que nunca o serão menos pelo facto de serem transitórias, substituídas por outras convenções, condenadas por sua vez em lhes chegando o tempo. A evocação que aí deixei serviu apenas para ilustrar, tão persuasivamente quanto fui capaz, o que teria sido a passagem de um canto narrativo à narração escrita. Bem mais difícil me será propor, como hipótese plausível, que o gênero literário a que damos o nome de romance, tendo chegado ao extremo do arco que, como imaginário pêndulo, traçou, se lança agora, retornando, pelo caminho por onde veio, até chegar outra vez ao canto primordial, donde teria de recomeçar a viagem já conhecida, galgando mais uns quantos séculos para o futuro.

Não sou tão desprovido de senso comum. Dinâmica e cinética são programas de um diferente foro do conhecimento, e a literatura, se infinitamente repete, como já foi dito, também infinitamente varia, como foi dito já. Visto o que, no ponto em que nos encontramos, é irresistível recordar aquele Pierre Menard, autor de um Quixote literalmente idêntico ao de Cervantes, consoante nos informa Jorge Luis Borges nas suas Ficciones, e que, tendo repetido, palavra por palavra, o imortal «Manco de Lepanto» (assim o designamos para não lhe repetir o nome, sina de que por fortuna escapou Camões, pois a ele ninguém, até hoje, ousou chamar «Zarolho de Ceuta»), diz, muitas vezes, coisas bem diferentes, não mais do que por diferentes serem os modos de as entender, neste século XX em que ainda estamos e naquele século XVII em que nunca poderemos estar. Este exemplo mostra-nos que qualquer repetição exacta é impossível e que, na sua viagem de retorno às origens, ao outro extremo do arco, o pêndulo, ainda que percorrendo uma identidade reconhecível, iria deixando atrás de si algo como uma alteridade coincidente, se se pode admitir uma tão grosseira contradição em termos.

Ora, se ao romance não é permitido fazer nenhum percurso inverso, se Pierre Menard, tendo fiel e escrupulosamente copiado o Quixote, acabou por escrever outro livro, como alcançaríamos nós de novo o canto, o desejado canto, e, se lá chegássemos, que canto seria esse que a nossa boca formaria, ainda que fosse igual a música e fossem iguais as palavras? Os homéridas não têm mais lugar neste mundo, o tempo é, de todas as coisas, a única que não se pode emendar. Que restará, então? Como iremos inventar o canto novo, esse a que me estou obrigando? E com que pertinência me proporia eu, se essa fosse de facto a minha intenção, anunciar o advento de novas formas literárias, sem cuidar de saber se isso agradaria ou conviria a quem as tivesse de viver e praticar? Chamar Homero aos nossos dias, «homerizar» o romance, terá sentido? Estas perguntas, em si mesmas, e pelo ordem em que se apresentam, não são inocentes. Autorizam-me, enfim, a trocar o geral pelo particular, penetrando no único universo de que posso falar com a legitimidade que dá o conhecimento de causa, isto é, no meu próprio e pequeno mundo, o do romance que faço, o seu porquê e o seu para quê.

Comecemos por considerar o tempo. Não este em que nos encontramos agora, não aquele outro que foi o do autor quando escrevia o seu livro, mas o tempo contido e encerrado no romance, e que tão-pouco é o das horas ou dias que levará a ser lido, ou uma referência temporal implícita no discurso ficcional, muito menos um tempo explicitado fora do narrativa, por exemplo, o título que recebeu, caso de Cem anos de solidão ou de Vinte e quatro horas na vida duma mulher. Falo, sim, de um tempo poético, feito de ritmos, de suspensões, um tempo simultaneamente linear e labiríntico, instável, movediço, tempo capaz de criar as suas próprias leis, um fluxo verbal que transporta uma duração e que uma duração por sua vez transporta, fluindo e refluindo como uma maré entre dois continentes. Este tempo, repito, é o tempo poético, usa todas as possibilidades expressivas do andamento, do compasso, da coloratura, é melismático e silábico, longo, breve, instantâneo. De um tempo assim entendido tem sido minha ambição que vivam as ficções que invento, consciente de que estou querendo, mais e mais, aproximar-me da estrutura de um poema que, sendo expansão pura, se mantivesse fisicamente coerente.

Afirmam músicos e musicólogos que uma sinfonia, hoje, é algo impossível, como o será também, mas isto digo-o eu, esculpir um capitel coríntio segundo os preceitos clássicos. Claro que qualquer pessoa, desde que dotada de habilidade suficiente, estará em posição de contrariar uma tal interdição de princípio, compondo de facto a sinfonia ou esculpindo de facto o capitel: o que dificilmente poderá é levar-nos a acreditar que, fazendo-o, estaria a responder a uma necessidade autêntica, tanto no plano da sua criação quanto no plano da nossa fruição. Ora, quem sabe se não deveríamos nós próprios confrontar-nos com a responsabilidade de aplicar a mesma sentença ao romance, afirmando, por exemplo, que também ele se tornou impossível na sua forma por assim dizer paradigmática, prolongada até hoje apenas com variações mínimas, só muito raramente radicais e logo assimiladas e integradas no corpo tópico, o que vem permitindo, com a graça de Deus e a benção dos editores, que continuemos a escrever romances como comporíamos sinfonias bramhsianas ou talharíamos capitéis coríntios.

Mas este romance que assim pareço estar condenando contém acaso em si, e já nos seus diferentes e actuais avatares, a possibilidade de se transformar no lugar literário (propositadamente digo lugar, e não gênero) capaz de receber, como um grande, convulso e sonoro mar, os afluentes torrenciais da poesia, do drama, do ensaio, e também da filosofia e da ciência, tornando-se expressão de um conhecimento, de uma sabedoria, de uma mundivisão, como o foram, para o seu tempo, os grandes poemas da antiguidade clássica.

Porventura estarei caindo num erro de perspectiva, se tenho em conta a crescente e parece que irreversível especialização, já quase microscópica, das aptidões humanas. Não é impossível, porém, que essa mesma especialização, por força de mecanismos ou impulsos de compensação, e talvez como condição instintiva de sobrevivência e de reequilíbrio psicológico, nos leve a procurar uma nova vertigem do geral em oposição às aparentes seguranças do particular. Literariamente, porque só de literatura é que estou falando aqui, talvez o romance possa restituir-nos essa vertigem suprema, o alto e extáctico canto duma humanidade que ainda não foi capaz, até hoje, de conciliar-se com a sua própria face.

E assim concluo. Manejando o meu canivete rombo, aparei e escavei o pedaço de madeira que aqui trouxe. Juro-vos que via o urso antes, via-o perfeitamente, juro-vos que continuo a vê-lo agora. Mas não tenho a certeza - culpa minha - de que o vejais vós. Provavelmente saiu-me a estatueta de um ornitorrinco, esse mamífero desajeitado, com bico de pato, feito de peças soltas de outros animais, desconforme, bicho fantástico - ainda que não tanto quanto o homem. Este que somos quando escrevemos romances, ou os lemos. Interminavelmente.

A última palavra, Magnífico Senhor Reitor, será para expressar, como escritor, mas igualmente como português, o meu profundo reconhecimento pela honra que a Universidade de Brasília me concedeu acolhendo-me entre os seus. Procurarei, em todas as circunstâncias, ser digno dela, não desmerecer jamais do vosso bom juízo, graças ao qual se me abriram as portas desta casa, que a partir de agora considerarei também minha. Muito obrigado."

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sussurros catedrais

Brasíííííííííliaaaaaaaa... Brasíííííííííííííííííííííliaaaaaaaaaaaaaaaa...
Brasíííííííííííííííííííííliaaaaaaaaaaaaaaaa... Brasíííííííííliaaaaaaaa...
Brrrrrrrrrrrrrrrraaaaaaaaaaaaaaaaaasíííííííííííííliiiiiiiiiaaaaaaaaaaa...
Uma voz clamava em sussurro... O mármore nobre brotava dilapidado e limpo da terra vermelha. Edifícios se erguiam como fantasmas que saiam das sepulturas, em meio as árvores distorcidas e rústicas. Um braço se estendida, outro em seguida: W3. E então em uma cruz, Eixos, tudo! Deuses adormecidos abriam os olhos. O céu crescia e azulava. Todos os regimes políticos, todas as religiões, todas as cores, todas as línguas... As almas clamavam em chama branda e crepitante Brasíííííííííliaaaaaaaa... Brrrrraaaaaaaaaasíííííííííííííííliaaaaaaaaaaaaaaaa... E a canção reverberava nas curvas e linhas retas, e as flores explodiam em meio a jardins espirituais. Pombal e bandeira. Mãe!? Alguém chamou... Pai! ? Alguém disse... Alguém aí!? Gritaram.. Guenhaíguenhaíguenhaíguenhaí!?... Respondeu a voz do Eco. O sol ardia sobre as construções oníricas que flamejavam. O coração do Brasil. Ela não foi construída, foi conjurada, não veio a um chamado, mas a uma convocação, com seu groso concreto que flutua inexplicavelmente, sua doce ordem mistérica. O coração batia forte ao ver a graça de um esquecido Deus. O céu se unia à terra nos gomos da catedral-pirâmide. Tudo respondia ao sol que vem do leste. Outrora, com força, eles ouviam os sussurros. O peito tremia vibrando no ritmo das batidas do coração. Braaasíííííííííííííííííííííliiiiiiiiiiaaaaaaaaaaaaaaaa... Uma voz baixa que ecoava da alma dos brasileiros. Já estava lá, mas ninguém a ouvira antes, a não ser Dom Bosco. E os candangos caminhavam para o interior vazio, em uma terra onde tudo é nascer do sol.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Nos braços da W3

Às 6h30 Zaratustra caminhou sobre o telhado, equilibrou-se sobre o muro e pousou com graça no gramado, cortando o jardim verde até o reboque, do outro lado. Entrou na escuridão e se abrigou. Gatos gostam de lugares quentes. Alguém deu a partida no carro e saiu. O sol já ameaçava brilhar forte. O veículo percorreu a Estrada Parque Indústria e Abastecimento, entrou pelo Eixão, que estava fechado, desviou pelo Eixinho W Norte, caminhou por sobre as tesourinhas e escutou 10 minutos de badaladas de sinos da Catedral Metropolitana de Nossa Senhora Aparecida. Lá atrás, Zaratustra saiu da penumbra divertindo-se com coisas invisíveis. Cidades satélites, que giram em torno da utopia. O carro desceu para a rodoviária, entrou no Eixo Monumental, passou por debaixo da plataforma, pela entrada da W3, pela Torre de TV, pela Funarte, pelo palácio do Buriti, fez o retorno no Memorial JK, entrou no Setor de Industrias gráficas e estacionou em frente ao edifício do Diários Associados. Jornalistas de plantão já começavam o dia. Ela desceu do carro e acendeu um cigarro. Branca como a neve, como os palácios de Niemeyer, com o cabelo pintado de vermelho, como a terra do planalto central, com os olhos incrivelmente azuis, como o céu da capital, e com os lábios plácidos como um lago. Completamente solitária, como um sonho de Dom Bosco. Ela era um sonho, vivendo entre os monstros da própria criação, contando o tempo perdido, celebrando a estupidez humana, com festa, velório e caixão, seria apenas sua imaginação...* Uma tragada mais longa que a outra, inebriando a alma, tranquilizando o corpo, aquela personificação da cidade, em linhas e curvas tão belas, não tinha motivo para estar ali. Era aniversário da cidade. Tudo poderia acontecer. Seu celular não tocou. Zaratustra saiu de casa para mais uma de suas andanças. Tudo vibrava. A jovem olhou para o próprio pulso. Uma tatuagem dizia W3 Sul, e uma cruz, os traços do arquiteto, tudo preto, como se fosse mal rabiscado. Ela desapareceu na última tragada, deixando o carro aberto e a bolsa sem documentos sobre o capô. Tudo inexplicável. Brasília, incompleta, eu te amo.

* Urbana Legio Omnia Vincit

Bloco das nuvens...
Utilidades ou não...
Última parada...
Mensagens do dia...
O tal da filosofia...

terça-feira, 6 de abril de 2010

A partida do Tigre

(Luiz Calcagno)

Em pensar que para mim
Com você tudo era claro.
Os teus cachos nos meus dedos,
Os teus beijos, meu regaço...

Em pensar que então, depois,
As circunstâncias mudaram -
Aqueles de quem tu eras,
Dos meus sonhos te arrancaram.

E você foi-se em espanto.
Fiquei só, a lhe esperar.
Nosso perto fez-se amplo,

Nosso lago fez-se mar,
E no final dei meu pranto,
À noite escura e sem luar.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Cândida Distância

Que chama lateja e queima?
Trepida sobre a pele trêmula e escorre.
Que chama vermelha de fricção,
Carne ferida, assada, engole?

Que chama dolorosa de amor?
Que amor pungente?
Que poder latente?
Que uma hora desperta,
E na outra adormece?

A febre fria das paixões,
A distância cândida da alma,
O trotar caótico das palavras,
Que chocam-nos contra as paredes.
Amor, amor, amor lascinante,
Lascera os olhos,
Faz brotar as lágrimas e derrubar estantes.

Essa dor profunda que faz nascer rebentos,
Que arranca almas do além,
Que devolve âmagos ao corpo físico,
Abandono da existência. Largo do mundo,
Raso ou profundo...

Ai amor louco de palavras loucas,
De palavreado duro,
De canções complicadas,
De ritmos, de festas, de velórios e alvoradas,
Amor da aurora, d'Estrela Dalva,
Amor de poesias, sem cargas pesadas,

Amor assim, simples, azul turquesa,
Nos quartos em reforma,
Nas camisas pintadas a mão,
Nos pés descalços emáquinas fotográficas,
Nas tardes de domingo.
Assim...
Simplesmente...
Amor.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Velharias

Poesias da antiga casa, que eu resolvi deixar aqui...

Richthofen
(Luiz Calcagno)

Mui bela és tua figura
Morte Ruiva se aproxima
Não te culpo pelos teus crimes
Em meu altar tu és rainha

Sei que é loucura minha
Morte Ruiva e estrangeira
Sei que é loucura minha
Meu amor é só besteira

Mas mesmo assim sonho
Contigo madrugada adentro
Imagino seus beijos quentes
Claudicantes, úmidos, lentos...

Imagino teu corpo branco,
Desnudo, trêmulo, culpado
Minhas mãos quentes passeiam,
Por terrenos nunca d'antes desejados

Morte ruiva e condenada
Richthofen tu és tão bela,
Solitária, poderia ser amada?
Seria meu peito tua eterna cela.


Melhor

Foi melhor pra mim,
Ou foi melhor pra você?
Não vou desistir assim,
Nem parar de beber.

Seus olhos são os melhores
Que alguém poderia ter,
Sinto saudades de tudo,
Não poderei mais viver...

Se foi tão bom assim,
Então foi melhor pra você.


Menina

Aquela voz estridente,
Que dá gastura na gente,
Aquele rosto fino,
Com cara de menino,

Pensando nas espinhas,
Que dão até nojo,
Naquele hálito de miojo,
naquele nariz inchado,

Pensando bem,
Acho que estou apaixonado


Shut Down

Maria nada via, só seguia,
E Edgar sozinho no solar,
Mais um amor terminava,
Mais uma gota no mar.

E doía tanto o coração,
Doía de não conseguir respirar,
Sem Maria, Edgar decidiu tudo,
Decidiu, pois, ia se desligar.

Não demorou pra correr a notícia,
Ele não estava mais no solar
Arrependeu-se então Maria Bela,
E como ele decidiu se desligar...


Profano - a paródia

Creio em mim mesmo,
Nada poderoso,
Criador de minha realidade,
E em meu coração egoísta e pagão,
Que foi esfaqueado, esmagado e espalhado.
Creio na minha batalha,
Creio em John Lenon,
Na comunhão dos sexos,
Na epifania dos meus pecados,
Na putrefação da carne,
Na vida enferma,
Ah, nem...


Pontada...

Esse lance de lança,
No meu amargo coração,
Está incomodando tanto,
Estou cheio de preocupação.

Esse lance todo de guerra,
Toda essa decepção,
Está lançando no mundo,
Uma onda de depressão.

Mas deixe de brincadeira,
E desse alvoroço gigantesco,
Será que você não entende,
Lança no dos outros é refresco.


Cara de cicatriz

O ferimento não fechou...
Eu é que absorvi.
Eu devoro as cicatrizes,
Que o tempo esqueceu aqui.


Maria Déia e Virgulino Ferreira

Senhora Maria Déia,
Esposa de Zé Neném,
Filha de Maria Joaquina,
Não era Maria ninguém.

Maria de Malhada do Caiçara,
Com certo cangaceiro fala
E vai ser na porta do rifle,
A mais doce e certeira bala.

Dona Maria Bonita,
Maria do Capitão,
Maria Gomes de Oliveira,
Maria de Lampião.


Onze mais três

Onze chances tivemos,
Onze vezes erramos,
Onze horas perdemos,
E ficamos aqui orando.

Onze dias se foram,
Onze dos nossos morreram,
E depois das onze da noite,
Onze garrafas bebemos.

Onze foram as vezes
Que tentaram me avisar,
Que aquelas onze pessoas,

Naquelas onze semanas,
Por onze deuses e onze diabos,
Iriam me exterminar.


Meretriz

Recebi um e-mail seu,
Com palavras duras e muito cruéis,
Uma verdadeira condenação,
Além de me proibir de voltar,
Além de me encher de aflição,
Me mandou pagar a conta,
Do seu vendido coração.


Três Versos

Errei por diversas vezes,
E errei mesmo, sem parar,
Por nada que tentasse me deter,
Continuei ignóbil, a errar.

De tanto errar uma hora acertei,
Por perseverar, por não desistir,
Por nada que tentasse me obliterar,
Não queria nunca deixar de existir.

Assim resumo meu amor por você,
Minha alma e meu golpe perverso,
Só fiz porque achei que merecia
Uma trilogia de versos.


Ela

Sob o seio do abatimento,
Anônima beleza,
Vejo a partida dela,
E percebo com destreza,
Que ela foi embora,
Só pra me causar tristeza.


Passos mitológicos

Numa casa abandonada,
Numa estrada estranha,
No passado da humanidade,
No fundo de um velho baú,
Cuja visão infundiria,
Saudade, lembrança, romaria,
Desejo, memória, nostalgia,
Encontrei minha ancestralidade.

Era tal a idade,
Daquela máscara vermelha,
Que me servia qual uma segunda pele,
Que me revelava um história,
Que somente em torno da fogueira,
O bisavô de meu tataravô Pereira,
Dançando e erguendo poeira,
Me ligaria a um antigo Deus.

Quando minha Mãe me disse adeus,
Fiquei só comigo mesmo,
E encarei a jovem figura,
No espelho da parede,
Tive de devorar meu medo,
De um engano que era ledo,
E roubar o meu segredo,
E lutar e escapar caverna.

Foi mancando de uma perna,
Que consegui vencer a luta.
Quebrou-se então a velha persona,
E minha face revelou,
Com a graça das ariranhas
Do mais profundo de minhas entranhas,
Sob formas deveras estranhas,
Um coração sem nenhum receio.

Não era produto do meio,
Vindo do próprio Hades,
Era um épico trajeto,
De árdua caminhada.
Foi então de força bruta,
Sob o suor da labuta,
Que a minha história foi fruta,
Do nascimento do Ser.


Desilusão

A casa era pequena,
O caso era confuso,
A moça fazia cena,
O retrato era difuso.
O rapaz se aproximava,
Com seu olhar intruso,
A menina que o observava,
Vestia uma moda em desuso.
Isso foi numa espelunca,
Numa cidade distante,
Depois sobre a luz da Lua,
Tornar-se-iam amantes.
Ele seria fotógrafo,
Ela seria bióloga,
Estudariam psicologia,
Nas suas horas de folga.
Teriam uma criança logo,
A vida seria colorida,
Num altermundo distante,
Bem longe de nossas vidas.
Seriam felizes para sempre,
Como nos contos de fada.
Até que bombas atômicas
Arrancassem suas asas.
Tudo terminaria deserto,
Sem cão, sem árvores nem nada.
Então o futuro seria incerto,
Sem cornetas na alvorada.
Sob a luz laranja do Sol,
Não haveria museu, não haveria espada.
Nem canção mais haveria,
Muito menos essa poesia.
Só restariam solitárias estradas.
Sob a luz laranja do Sol,
Não restaria mais do que um triste nada...


O mentiroso

O meu cartão de visitas,
Nunca foi muito bem vindo,
Não é o Pão de Açúcar,
Nunca será o Pelourinho,

O meu cartão de visitas,
É uma porta fechada,
Para todos os românticos,
Para o coração da amada.

O meu cartão de visitas,
É um cerrado punho direito,
Com um anel grande no dedo,
Sou o valentão perfeito.

O meu cartão de visitas,
É uma mentiraiada,
Sou um pobre romântico,
Desses que não valem nada.


Repórter fotográfico

Depois do atropelamento,
O jornalista se aproximou,
Tomou a vítima nos braços
Abraçou a jovem e olhou.
Foi beijado e retribuiu.
Com toda obediência.
Sem saber daquele beijo,
Qual era a procedência.


Loucura

Ela riscava com os finos dedos
Ladrilhos embaçados pelo calor.
A jovem guardava consigo segredos,
Invenções e desventuras, verdades e medos,
Ela não tinha em seus auspícios,
Que aqueles ladrilhos do quarto,
Naquela sala vazia,
Eram os azulejos do hospício.


Pelo corpo de Estela

Dedo mirando o céu,
Apontando para as estrelas.
Dedos de ternura,
Na ponta do nariz dela.
Dedos de ousadia,
No meio de das pernas de Estela.

Gritos atrás da porta,
Pelos meus simples gestos.
Palavras de rude paixão,
Bebendo seu caldo indigesto,
Dedos pelas suas costas,
Nunca fui muito honesto.

Bandoleiro sorrindo sozinho,
Vida de alvoroço.
Ela é minha Estela,
Mordendo o meu pescoço.
Nunca fui muito bonzinho,
Brincando com o seu corpo.
Deitado em berço esplêndido,
Te amando até o osso.


Perdido

Abro os olhos,
Com Maria.
O coração dispara.
Menina voluptuosa,
Acorda sorrindo para mim,
Com seus olhos azul céu,
Seus lábios negro asfalto,
Seus dentes de paralelepípedos,
E sua pele friorenta.
Essa é minha Maria,
Essa é Maria Sargeta.


Nascido das trevas

Mundana, insana,
Sem pano algum no corpo,
Seguindo, chorando,
Sem pudor algum no rosto,
gozando, sangrando,
Ela geme em alvoroço.

Foi um dia tão inocente,
Menina, criança, gente.
Hoje, amante gentil,
Vampira, leoa, serpente.
Veio revirar meu mundo,
Obliquo, a nada inerente.

Mostrei a ela o caminho,
A trilha pagã da salvação.
Tomei dela a pureza,
Sorrindo e gemendo uma cação.
Que os demônios de nosso belo cosmo,
Abençoem essa prevaricação.

O ventre dela preenchido,
Completa a nossa crucificação.
Nasceria daí um rebento,
Ânsia da vida e da incompreensão.
Ela foi virgem, pura menina,
E ressuscitada como Dragão.


Apocalipse

O carpinteiro trabalhava
Curvas indeterminadas.
Uma amante de madeira
Com seios e alma talhada.
Mas a plasmação da noiva,
O univerço tolia.
Eram formas idealizadas,
Por uma vida atormentada.
Então em acesso de fúria,
Ele cedeu marteladas truncadas,
A a estátua futura,
Chorou pela face lascada.

Quebrou-se deixando a sombra,
De uma beleza esmerada.
E fez para todos a falta,
de uma existencia encerrada,
Cuja presença não esteve,
em nós jamais aclarada.
Cerragens de realidade,
Em uma iluzão revelada.


Capelo

Vôo com minhas asas,
Asas que Deus me deu.
Vôo com minhas asas,
No infinito céu.
Inclino, levanto, rodopio,
Com o sol e o seu calor.
Vôo com as asas da alvorada,
Os caminhos de meu mentor.
Vertiginosamente vôo,
Vôo para o amanhã.
Alçando vôo, os sonhos,
Gaivota de esplendor.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Destino Certo

(Luiz Calcagno)

O sol encontra a noite,
No último segundo,
Ele quer beijar a Lua,
Em extase profundo.

Em plena agonia,
A Lua que se põe,
Vê nascer heróico Sol,
Remoto leste que se opõe.

E enquanto ele se parte,
E se vai contra a vontade,
Ela sente pleno em peito,
Dor de fogo que lhe invade.

Ele pinta o horizonte,
o crepúsculo da amada,
E deixa a linha que divide,
A distância encantada.

Ela sempre se transmuta,
Nessa dança do destino,
Cheia, curva, alva, negra,
Ela some em desatino.

Ai do Sol viver a Lua,
Pobre Lua que quer Sol,
Dois amantes, um umbral,
Se fitando em caracol.

Corpo e alma, eternamente,
Esse duplo é admirável,
Se fizessem minha'vontade:
Beijo pleno e incansável,

Nasceria então o filho,
Que o destino desejou.
O seu leito seria a nuvem,
Fecunda estrela do amor.

II
Dente de Leão
(Ao meu amigo Denny)

A vida é dente de leão.
Que parte carne,
Que rói músculo,
Que corta a respiração.

Osso canino atroz,
Faca sagaz afiada,
Conjunto de presas mortais,
Que ceifa a vida veloz.

A vida é dente de leão.
Suave, brando, delicado.
Eu toco, eu ergo, eu sopro,
Ele se desfaz em imensidão.

A vida é dente de leão.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Quase uma erupção vulcânica

Ela tinha cólicas. Ele passou o olho pelo site, clicou em cidades, correu brevemente pelas notícias subindo e descendo a tela. Ela colocou o absorvente na calcinha e se vestiu. Ele minimizou a janela e entrou novamente no bloco de notas. Um helicóptero passou do lado de fora. Parecia próximo. Uma sirene na rua. Ele colocou os dedos sobre o teclado e olhou para a tela como quem olha para um papel em branco. Iniciou mais uma história. Apagou tudo. Ela saiu do banheiro e acendeu a luz do quarto. O sutiã estava sobre a cama. Ela o vestiu e colocou uma blusa. o quarto era iluminado pelo banheiro. Ela apagou a luz e ficou no escuro. O apartamento parecia completamente vazio. O prédio parecia completamente vazio. As ruas pareciam completamente vazias. A cidade parecia completamente vazia. O estado parecia completamente vazio. O país parecia completamente vazio. A Terra parecia completamente vazia. A mente de Buda. Marte! Uma supernova nos confins do universo. Ele começou a escrever uma poesia. Olhou pela janela. As luzes apagadas. Somente o computador iluminava o escritório. Os braços magros contorciam complexos nervos que em um sistema quase perfeito forjado pelo próprio acaso fazia com que os dedos transmitissem ao computador a mensagem que o cérebro enviava. "Se eu fosse Peter Pan". "Cinquenta cents e uma pá". "A impiedade da rocha". "A fragilidade do coração". Deleteeeeeeeee... Tudo de novo. Passos na escada. Uma fresta de luz por baixo da porta. Uma fechadura. Escuridão. Batida. Ela saiu. Ele ficou escrevendo. Começou novamente. O elevador soou. Lá fora tudo era claro. O próprio destino era claro. Era luta. Era vontade. Ele levantou-se. Seu lóbulo direito doía. Períodos curtos, era o que o editor havia falado. Tudo tão simples quanto um grunhido. E quando tivesse tudo ao alcance, não teria nada. Ele endireitou-se na cadeira. Pensou em beber. Pior que beber e dirigir é beber e escrever. Homens das cavernas. Lembrou-se. Neandertais. Seu coração batia forte, acelerado. Um trem de carga. Um vagabundo iluminado. Um trem de feno. Cowboys atiram para o alto. Correm em seus cavalos. Uma aventura galáctica no velho-oeste. Tudo é galáctico para quem vive aqui. Moramos na Via Láctea. Na via do leite da vaca cósmica, que escorre. Uma viagem de bilhões de anos na velocidade da Luz. O plano de Deus, a evolução, e só. Sem pernas decepadas, tetraplergia e mães e irmãos assassinados. Tudo isso é culpa deles. Dos homens. Deus só tem um plano: e-v-o-l-u-ç-ã-o. Darwin é meu pastor... As letras vão surgindo novamente. Será que a alma que comanda océrebro, que comanda o braço, que comanda as teclas, que comanda a CPU, que comanda os elétrons do monitor, será que a mente que comanda os elétrons acertou dessa vez? Não. Uma página inteira deletada. O tempo é relativo. Ele riu. Piadas de redação. Escândalos políticos. Estava cada vez mais medíocre. Escrevia cada vez pior. Cada vez menos. Mas acreditava em si. Em nome do parlamento. Que caia uma bomba atômica sobre a Câmara Legislattiva se o narrador estiver mentindo. Era uma erupção vulcânica. Sem precisão. Ele começou novamente. O celular tocou. Ela estava no banco de trás do taxi. Liguei para me despedir. Não quis atrapalhar. Ele digitou aquelas palavras em silêncio. The Song Remains The Same - 5:30. Como está o trabalho? Médio. Estou no prazo. Que horas você volta? Não sei. "TIGER, tiger, burning bright In the forests of the night, What immortal hand or eye Could frame thy fearful symmetry? In what distant deeps or skies Burnt the fire of thine eyes? On what wings dare he aspire? What the hand dare seize the fire?"(Blake). Você está sempre no prazo. Eles riram. O coração estava cheio. Um beijo longo em algum dia de um passado recente. A terra tremeu e engoliu as vidas. Um coração partido. Mil corações partidos. Cem mil corações partidos. Dedos, brita e concreto. Concreto demais. O que está acontecendo com o mundo, que nada acontece? Você pensa demais. preciso continuar isso aqui. Está no meio do texto? Nem no começo. Mas tive uma idéia. Aproveite. Aproveite. Amo você. Idem. Beijo. Beijo. Tudo estava quente e bom. O mundo é muito grande. Ele começou novamente. Over The Hills And Far Away - 4:50. Os dedos vacilaram novamente. Será que deveria voltar a algo antigo? ainda não. Venceria? Sim. Ainda não. Um suspiro antes da queda. Um mergulho. Suicídio. assassinato. Palavras, palavras, apenas palavras. Palavras o suficiente para encher um grosso periódico diário. Meio de comunicação. M-e-i-o-d-e-c-o-m-u-n-i-c-a-ç-ã-o. Um meio para se comunicar. O ar. Muitas vezes, o ruído é a própria alma. Como dizer tudo? Não havia verdade nas notícias. Eram muitas mortes, muita tragédia, muita gente, fezes demais. Morte, Peste, Guerra, Fome. Foco, concentração. Poesia. Beirut, Irã, Luanda, Angola, Haiti. Eles compravam navios negreiros e então libertavam os negros. A primeira nação livre da América. Será que uma poesia...? Não. Nada de poesias. Apenas silêncio. Os dedos corriam alucinados como cavalos de corrida. As letras surgiam istantâneas na tela. Frururururururu. Frurururuurur. Frururururururuur... A testa franzia. Expressões subconscientes. Um milênio de silêncio. Adeus. Ele desligou o monitor. Ela desceu do carro. Ele acendeu a luz da sala. Voltou ao escritório, aumentou o som e pegou o texto na impressora. Pronto. Uma merda. mas dava para enganar. Ao menos até a próxima semana. Serviria, gostariam, estava melhor do que imaginava. Pensando bem, não era tão mal assim. Uma garrafa de suco de laranja. Gomos corriam pela garganta. Frescor e cheiro do vitamina C. Um barulho de fechadura. Você voltou, tão cedo?! The Ocean - 4:31. Ela sorriu, deixou a bolsa no sofá. Ela o abraçou. Eles se beijaram. Aquele alento. Me faça parar de tremer... Não.