Nada mais normal. Sexta-feira, abre os olhos, 6h30, água gelada no rosto, pasta de dente, escova de dente, banho gelado, lava o cabelo azul, sai pelada do chuveiro, enrola a toalha na cabeça, enxuga o corpo, olha a barriga e os peitos no espelho, veste calça colan preta, veste a meia preta, veste um jeans curtíssimo, bota o coturno, veste o sutiã da Betty Boop, bota top preto, veste casaco de capuz, pega CD-player, coloca U2 para tocar, pega pilha extra, enfia na mochila, coloca fone de ouvido, pega caderno, guarda-chuva, deixa a mochila no sofá, tranca a porta, ascende a luz do corredor, abre a porta, põe ração para o gato, toma um copo de leite, sai, tranca a porta, abre novamente, pega a mochila, tranca novamente, chama o elevador, acende a luz do corredor, volta e confere se a porta está trancada, pega o elevador, desce com o vizinho desagradável que fica olhando sua bunda, sai do elevador, sai pela portaria, caminha pela rua, pelos prédios, para na parada, no meio do temporal, absolutamente sozinha, cheia de expectativas e pesares...
O ônibus atrasa, o ônibus chega, passa da solidão para o excesso de companhias, o veículo está lotado, paga passagem, responde com mal criação a piada do cobrador, se espreme no meio das pessoas, vai para a parte da frente do carro, alguém passa a mão na sua bunda, tenta achar quem é, não vale a pena, continua se espremendo, ouve uma cantada suja, segue em frente, para na escada, tira um livro do bolso, se escora na barra, começa a ler, dá passagem para quem vai sair, volta a ler, vira a página, dá passagem para quem vai sair, volta a ler, segura forte porque o motorista corre e freia, volta a ler, vira a página, o olho dói, põe os óculos, volta a ler, lê por mais tempo, vira a página, o motorista chacoalha o carro, fica nervosa, volta a ler, o ônibus para, dá passagem para outros passageiros, volta a ler, dá sinal e desce do ônibus...
Corre até a marquise, procura a chave na bolsa, carro joga água e molha tudo, procura a chave na bolsa, acha o molho de chaves, passa uma moto, molha mais um pouco, acha a chave, a chuva aumenta, abre a porta da loja, levanta a porta da loja, trava a porta da loja, acende a luz da loja, tira o casaco, bota The Doors para tocar, acende as luzes do mostruário de vinis, olha no relógio, assina a folha de ponto, pega o caderno, estuda o material da faculdade, atende um cliente que não quer nada, volta a estudar, atende outro cliente que não quer nada, volta a estudar, não atende o próximo cliente, ele quer comprar um disco, vende o disco, ele quer um CD, vende o CD, ele quer um filme, vende o filme, ele fica com má impressão porque não foi atendido logo, para de chover, faz sol, ela volta a estudar, não aparece mais ninguém por muito tempo, aparece alguém, são 14h, ela assina a folha de ponto, seu amigo chega, ela se despede, vai para a parada, está cheia, o ônibus está vazio, segue para a universidade...
O rádio manda desarmar o posto de observação. 15h. Ele desmunicia a arma, retira a luneta, dobra o que é de dobrar, desarma o que é de desarmar, guarda na maleta, desmonta o tripé, guarda na maleta, pensa na manhã, guarda o binóculo, planeja a noite, enfia todo o material em uma sacola preta maior, lembra que matou um homem na última semana, não sente remorso, ajeita a boina, pensa na família do homem que morreu, sente pena deles, desce da torre da igreja, entra no furgão, balança dentro do carro, xinga o companheiro, ouve xingamentos, ri, provoca o motorista, ri mais, lembra do caso do traficante, ri mais, olha no relógio, fala sobre o livro que está lendo, fala sobre Esparta, fala sobre treinamentos militares, vai para a academia, fala de filmes, fala de mulheres, fala de dinheiro, fala de aluguel, fala de motos, vai para o banho...
Falta alguma coisa, sente um vazio, se enxuga, outros caras no vestuário fazem brincadeiras com a toalha, guarda tudo no armário, vê que esqueceu calça e tênis, veste a calça da polícia, tira a mochila do armário, enfia tudo na mochila, lembra que vai folgar quatro dias, sente alívio, pensa em viagem, pensa em fazer alguma coisa, pensa no governo, pensa nas pessoas, vai para a parada, o ônibus não demora, pega o ônibus, está cheio, mas tem lugar, vai sentado lendo, para na universidade,o ônibus quebra no caminho, pega outro ônibus, vai o resto do caminho em pé, um bebê chora no colo da mãe, fica olhando os olhos do bebê, lembra do filho mais novo de seu pai, dá sinal para o ônibus, o motorista não para, espera pacientemente, dá sinal novamente na parada seguinte, o motorista para, desce, vai caminhando até a universidade, 19h30...
Pensa que o dia acabou, pensa que a vida parece pobre, pensa que o sistema sacaneia todo mundo, pensa nos livros que leu, pensa no capitão fazendo piadas, acha graça, lembra da avó, pensa na tatuagem que quer fazer, pensa no computador que encomendou, pensa no torneio de arco e flecha, atende o celular, fala com o amigo, um carro passa, não ouve nada, a ligação cai, o amigo liga de volta, volta a falar com o amigo, descobre que o amigo vai ser pai, fala sobre a polícia, fala sobre o Bope, fala sobre planos para o fim de semana, fala sobre a garota punk, fala sobre a falta de sentido na vida, fala sobre a busca de um sentido, o amigo lembra que estão no celular, desliga o celular, um estranho se aproxima, encara o estranho, o estranho se afasta, pega um atalho, chega na universidade, senta no CA de veterinária, olha no relógio, abre o livro, começa a ler, alunos passam, os espartanos recebem Alcebíades, a guerra muda de lado, ele olha no relógio, não consegue se concentrar, volta a se concentrar ela para diante dele...
Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, 20h12, eles se beijam longamente, ela fica mole e feliz, ele fica duro e contente, dão as mãos, alunos passam por eles, caminham, contam o tempo que ficaram sem se ver, ele conta o que fez durante a semana, pessoas passam por eles, fala de armas, de como Alcebíades é importante na história da Grécia, ela fala sobre Tróia, conta dos animais que dissecou, dos filmes e discos que vendeu, professor, professora, aluno, aluno, servente, planejam o final de semana, ela não conseguiu folga segunda e terça, param, se beijam, ele a espreme contra a parede, ela fica feliz, voltam a caminhar, vão para a parada, o ônibus demora, ele fala de como ficou na torre da igreja, ela está hipnotizada, ele fica hipnotizado pela hipnotização dela, se beijam, o ônibus chega, está vazio, resolvem parar no bar, ele liga novamente para o amigo, ele vai para lá de carro com a noiva, começam a comer e a beber, falam sobre bebês e noite a dentro...
Homens brigam no bar, 22h45, ele pede a conta, o amigo sai com a noiva, ela se levanta, ele se levanta, um homem voa em cima dela, ele empurra o homem em cima do outro que estava brigando, os amigos do que voou partem para cima do atirador, ele bate em um, bate em dois, bate em três, apanha de quatro, o amigo entra, ela puxa ele para fora, fogem para o carro do amigo, a noiva fica nervosa e passa mal, vão para o hospital, ele ganha pontos na sobrancelha, o amigo imobiliza o dedo, a noiva faz ecografia, ela fica na sala de espera, está chateada, ele volta primeiro, eles discutem em voz baixa, tem uma mulher que apanhou do marido, um velho com dor nos rins, paramédicos passam com um homem gordo na maca, correm muito, eles conversam mais, ele pede desculpas, ela vira o rosto, ele beija a orelha dela, passa um homem sangrando, passa uma garota segurando o braço, uma mãe com um menino no colo, ela o perdoa, o amigo e a noiva saem do consultório, ele dá um dinheiro para a gasolina, eles seguem para a casa dela...
Eles param no semáforo, travestis acenam, eles seguem em frente, um carro de vidro fumê os persegue por um tempo e depois vai embora, uma viatura da polícia para o amigo, eles mostram que são da polícia, o policial faz vistoria no veículo, as meninas ficam nervosas, eles passam em uma lanchonete, fazem um lanche, uma criança pede dinheiro, a noiva paga um sanduíche, um bêbado pede dinheiro, ele pede para que ele saia, um mendigo pede comida, o amigo se irrita com o jeito do homem, eles se desentendem, ele olha para ela e eles olham para a noiva, ele se levanta e apazigua, pede para o mendigo ir embora, o garçom manda o mendigo embora, 0h57, eles pagam a conta, entram no carro, o amigo dirige a toda velocidade, ouvem Bom Jovi e cantam em voz alta, os namorados se beijam no banco de trás, os noivos se divertem e a grávida passa a mão no pênis do noivo enquanto ele dirige, param em frente ao prédio dela, eles descem, o amigo e a noiva se despedem e vão embora, eles acham que a noite foi boa, entram na portaria, entram no elevador...
Alcebíades e os espartanos e o CD-player com o U2 ficaram no sofá da sala-cozinha, o atirador e a menina punk foram para o quarto, estavam cansados, mas acordados, se beijaram, ele tirou a blusa, ela tirou o casaco, ele soltou o cinto, ela tirou o top, se abraçaram e se beijaram, ele tirou o sutiã dela, ela tirou o jeans e a calça colan, rolaram pelo chão, subiram na cama, rolaram na cama, se beijara, se preencheram, gemeram, sussurraram, trocaram de posição, suaram, beijaram, beijaram, lamberam, beijaram, falaram alto, sentiram prazer, rolaram, caíram da cama, rolaram. Continuaram, ele dominou, ela dominou, ele sorriu, ela foi às nuvens, se amaram, ad infinitum, a noite inteira, amém...
terça-feira, 31 de março de 2009
Betty punk e o atirador de elite!
terça-feira, 24 de março de 2009
O Caminho das Folhas - Fotografias (Cap. 4)
O cheiro de químicos inebriava o laboratório. O local era dotado de uma atmosfera escura e misteriosa. Havia um “q” de tranqüilidade em tudo. Na escuridão, passos ligeiros e ágeis e mãos de dedos finos tateavam e dependuravam fotos em um varal. Nem uma réstia da usual luz vermelha iluminava a sala. Tudo era perfeitamente organizado, meio a moda antiga. Além do silêncio, apenas o murmurar doce de uma canção. Uma mulher trabalhava. Jaleco branco sobre a roupa. Ilka revelava os últimos trabalhos de Tom, sempre encantada, com a ansiedade aflita de querer ver primeiro as fotografias daquele artista. Era um grande capricho. Ele não a conhecia. Não sabia que era ela quem cuidava de suas revelações. Mas a jovem, dona do Photo, sabia muito bem quem eram seus clientes, e como tratar as fotos de cada um segundo seu tom de voz e o tempo de exposição do material, em uma relação engraçada e difícil de compreender. Repentinamente as luzes vermelhas da salinha se acenderam.
- Laila?
- Como você sempre acerta? Eu mudei o perfume, vim de tênis para não fazer barulho e tudo.
- Eu reparei também. O que foi?
- Seu cabelo está lindo. Não sei como faz essas coisas tão simples e tão bonitas. O Takeshi concluiu as fotos coloridas...
- Veja Laila, olhe como estão ficando... Não são lindas?
- Nossa! São lindas mesmo. Ele surpreende a cada trabalho. Como consegue ver o mundo desse jeito? São detalhes que nunca percebemos. Uma ferrugem no portão, o olho do sapo, cada coisa... Sei lá.
- Que inveja, amiga. Se eu pudesse ao menos vê-las. Mas sei que são boas. Posso sentir. Elas estão repletas de arte, e até as moléculas do papel e do químico sentem isso. É como se o conjunto soubesse o que está compondo, e eu como regente, pudesse escutar a música que a foto exala. É tudo uma questão direta de conversão de energia. Já li muito sobre ele, sabia?
- Do jeito que você fala, às vezes parece que você vê essas imagens, sabe? Pouca gente percebe essas relações que você faz com o mundo...
- Um trabalho de arte de verdade está sempre carregado de uma energia de beleza. Dá pra sentir, ouvir, cheirar, enfim... É quase como se eu pudesse escutar o que as imagens dizem, nesse caso. Eu senti isso quando vi a Venus de Botticelli. Tinha uns 10 anos. Foi quando eu entendi. Meu velho me colocou parada diante do quadro, e depois de outro quadro, e senti a diferença. Foi incrível. É como se saísse um vento diferente de cada obra, como se ela respirasse. Desde então passei a amar arte. Meu pai sempre achou estranho, mas me apoiou. Não é engraçado?
- Eu sei... Você já contou essa história mil e uma vezes. Eu adoro ouvir, mas não dá tempo agora. Então, as fotos coloridas também estão prontas? Posso ligar pra ele? Precisamos ver os outros clientes...
- Não. Vamos esperar essas ficarem prontas. Amanhã, quando abrir eu ligo, às 9h em ponto. Amanhã é dia treze, não é? Aí falo com ele. Aí você para de me encher com essa história de fale com ele, se aproxime, chegue junto, etc, etc..
- É, é treze. Paro de te encher o dia que você fizer ele te convidar pra sair com ele, e me contar como foi tudo depois.
- Ai, não vai ser nada. Você vai ver. Vai ser uma conversa morna, de trabalho. Até parece que ele vai me conhecer e me chamar pra sair, ou que eu vou chamá-lo para sair assim. Vamos nos falar por telefone e marcar um encontro no balcão, só se for. Ele deve ser super profissional. Você vai ver. Alô, alô, as fotos estão prontas, vou buscar, muito obrigado, obrigado o senhor, bla, bla, bla.
- Você passou o trabalho dele na frente de todos os outros mais uma vez. Vamos atrasar outros clientes por isso, sabia? A conversa vai ser morna, mas você vai receber ele depois, e eu vou mexer os meus pauzinhos. Já te falei que minha irmã é colega de uma amiga dele, uma publicitária. Alguém sempre conhece quem você procura em Brasília. Não deve ser difícil alcançá-lo.
- Ai, ele deve ser lindo como as fotografias dele. Fico imaginando como são os traços, como se fossem entalhados na madeira, só que suaves.
- Você e esse seu amor platônico.
- Não ria! Descreva-o mais uma vez. Eu sou sócia majoritária. Mando aqui.
- Por favor, tenho mais o que fazer.
- Não seja cruel.
- Tá bom. Ele tem cara de pastel molhado. É bochechudo, com barba, olhos castanho-claros, é muito objetivo no que fala e se veste igual a um cantor de folk.
- Mesmo com seu sarcasmo ele ainda parece maravilhoso. Como um cantor de folk se veste? Laila se retirou. A luz vermelha se apagou e toda a sala mergulhou em uma imensidão negra. A porta se fechou. Ilka mergulhou na introspecção do lugar e trabalhou sem se distrair. As imagens vivas de Thomas pareciam enxergar no escuro, como elementais da natureza, enquanto a jovem dançava na escuridão.