Rude estava sob o efeito da anestesia gasosa e adocicada do hospital. Mãos plastificadas cortavam e reviravam seus músculos. Ele quase podia ouvir. Ele quase podia ver. No fim de tudo restaria uma vaga lembrança, como se aquele momento na sala de cirurgia fosse um estranho sonho que lhe deixasse pontos no joelho e um movimento da perna a se recuperar com o tempo. Paralelamente às impressões, parte de seu cérebro sonhava, ou, quiçá, despertava, no momento da dormência dos sentidos, quando a alma pode enfim ter um pouco de lucidez. Não há como descrever exatamente as figuras, símbolos e sons que a alma produzia no entorpecer da muralha da existência física, mas era algo como ver diretamente os seres humanos suspensos e perdidos. Ou no melhor estilo René Magritte: "Isto não é um cachimbo". Isto não é o Planeta Terra. Este não sou eu. Esta não é uma mesa de cirurgia e isto não é um computador. E então milhares de botas em pernas de calças caqui marchavam compassadas reproduzindo trovões, ondas: "Vlam! Vlam! Vlam!", um passo depois do outro. Então a muralha foi crescendo, e crescendo, e crescendo, até que suas pálpebras se abriram em um fôlego afoito e profundo e ele sentiu a maca fria e o lençol grosso, e ouviu o barulho do monitoramento do próprio coração. Uma voz feminina, provavelmente de sua mãe ou de uma enfermeira lhe perguntou: "Acordou?". Ele compreendeu: "Não".
terça-feira, 19 de outubro de 2010
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É isso aí, amigo, manda ver!