quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Outubro Laranja

As cigarras cantavam há muito tempo, mas não chovia em Brasília. Podia-se caminhar a pé pelo Eixinho, pelo Eixão, pelas W3, pelo parque, e algumas vezes se ouvia a música dos insetos bem de longe, mas se ouvia. Nada de chuva. Era o outubro mais quente dos últimos 10 anos, o que significava que se houvesse uma forma de destacar os outubros dos outros meses e colocá-los lado a lado, como uma coleção de inseto, esse talvez fosse o maior, mais forte e mais vermelho. Até o vento frio da madrugada era quente.

Caminhando pela Água Mineral podia-se ver em todas as árvores as cascas queratinadas de insetos que cresceram e abandonaram sua velha carcaça. Aqueles eram exoesqueletos de cigarras (olha elas ali de novo), que quando criança Artur gostava de usar como broche. “Olha, mãe, uma casca de bicho. Vou grudar um monte na camisa”, dizia. “Não seja nojento menino!”, respondia dona Vera sem prestar muita atenção. Era uma sujeira toda vez que a mãe o buscava na escolinha da Vivendo, na L2, no final do dia.

As águas nas encanações estavam quentes. A água do filtro estava quente. O Poço Azul era um verdadeiro oasis, bem como a piscina velha do Parque Nacional. Os animais se deitavam à sombra, enfastiados, olhando o mundo, esperando a vida passar. O asfalto gerava miragens, flamejava. Muito sorvete e água gelada. Todo o Distrito Federal queria chover, queria água, queria assentar a terra vermelha. Se sentiam em um filme daqueles de nordeste, de chão rachado, bem picaresco, que é para dar ênfase ao calor do lugar.

Foi quando caíram os primeiros pingos que Artur beijou Maria. Foi feliz. Caminhavam pelo estacionamento do Setor Comercial Sul, e os vidros fumês dos carros refletiam tudo como espelhos, cheios de gotículas agradavelmente molhadas, bonitas de se fotografar, que umedeciam a atmosfera abafada de um dos lugares mais movimentados de Brasília. Lá não se ouviam as cigarras, apenas os ambulantes, os motores, as buzinas (em Brasília não se usa buzinar). Estavam bem na frente, perto do Conic. A água estragou o sorvete da garota, mas ela estava focada em outra coisa.

- Você me beijou, gato!
- Eu sei.
- Agora não somos mais amigos.
- Somos, mas não somos apenas amigos.
- Hum... Você parece que sabe de tudo.
- É. Eu sei de tudo.
- Convencido...
- Você também sabia...
- É, mas não posso dizer. Sou menina.
- É menina. Minha menina agora.
- Você tem um beijo muito gostoso.
- Que nada, são seus lábios.
- Brega...
- Brega é você me chamar de "gato". A maior gíria dos anos noventa, gata.
- Ei!

Mas aquilo já era passado. Aquela garota molhada, a virgindade do rapaz, os seios pequenos, a cama e tudo mais. Até as noites de teatro e os círculos de discussão de Ariano Suassuna eram passado. Era o outubro mais quente do ano e ainda não havia chovido. O jovem biólogo caminhava pelo Pistão Norte, em Taguatinga, empurrando sua bicicleta com o pneu furado, e pensou que devia se livrar daquela casca velha, afinal, era hora de crescer, dar um passo adiante. Sentia que seria outro, e sua memória seria uma brincadeira de broche para algum deus criança que vagueia pelo Universo.

Mas uma chuvinha iria bem para acompanhar. Esse clima maluco de Brasília. Não era agosto ou setembro, mas dava para a cabeça doer de tanto sol. De repente alguém o abordou. Era uma voz angelical e sorridente. Voz de atriz. “Ei, bobão, eu cheguei ontem, sabia?”, ela disse. Ele olhou para trás.

- Maria?

Ela estava lá, com a mesma cara de palhaça, boa, infantil e mulher tudo ao mesmo tempo. Seis meses na França não mudam muito as pessoas, mas havia algo de diferente nela. Ela se aproximou e o abraçou. Ele largou a bicicleta e retribuiu. As formigas se agitaram com o guidom que derrubou a entrada do formigueiro. Uma brisa fresca varreu o lugar inteiro. O vento ficou mais forte. Nuvens tomaram o céu enquanto os carros passavam sem respeitar os pardais de trânsito. Um chuvisco fino começou a cair. Tudo era igual, só que era diferente.

- Podemos conversar, gato?
- Claro!

18 comentários:

  1. gostei!
    ficou bom mesmo! Se vc mandar para algum jornal aposto q eles publicam sua cronica!
    parabéns Luiz1

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  2. Cheguei a ouvir o som do canto da cigarra, naquele calorão mormacento.
    Estive em Brasilia somente uma vez, no verão. E lendo o teu texto, relembrei aquele tempo.
    Muito bom.
    abraços

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  3. tem girias que nao passam (ponto final)
    nao eh broto (interrogação)

    b (virgula) b (ponto final)

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  4. Cara, vou te falar com toda a sinceridade do meu coração: é um absurdo você não estar sendo publicado.
    Tu é bom, cara.
    Muito bom mesmo.

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  5. .

    já não sei mais o que dizer. o que dizer, em palavras grafadas, sobre um texto escrito em tantas minuncias e com tanto talento?

    dizer é nada!

    só um tímido e encorajador:

    - parabéns, luiz!

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  6. Texto macio e com cheiro de sol.
    " Até o vento frio da madrugada era quente" foi ótimo.

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  7. meu deus.

    cara, do caralho meu velho.
    bah, eu ouvi as cigarras, senti o beijo, imaginei o trânsito, poxa, baita texto.

    tu escreve muito mesmo.


    sorte e luz, porue enquanto você escreve o mundo responde.

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  8. chuvas de setembro/outubro são ótimas...
    além de trazerem as melhores recordações da minha vida, elas inventam de cair justo no fim de semana que vou pra Pirenópolis. Depois continua o calor infernal.
    Parece praga, né?

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  9. ah propósito, melhor 'gato' do que dizer que o lance é 'batuta'... dizae! hauhauahauha... lembrei q eu tinha mania de dizer isso e todo mundo tirava sarro!
    De fato, eu mereço mesmo! (¬¬')

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  10. Muito bom.
    Muito bom mesmo.
    A Maria é foda, Gato é uma giria boa.
    HAUIHAIHIUHAIUH
    Beijos, querido.

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  11. Tem um selo pro Sr. lá no meu blogue.

    :)

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  12. JURO, até me arrepiei,rs... Nossa quanta suavidade, quanta doçura, quanta leveza!!!!
    Muito lindo o conto, muiito mesmo!

    Beijocas! :)

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  13. o meu garoto, o motivo da vinha vinda aqui é espirituoso e feliz.

    quero agradecer pelo e-mail que enviou para a Jana, obrigado mesmo velho, olha, quem dera serem minhas palavras as únicas responsáveis pelos bons textos que você escreve.

    vou te contar uma coisa. nem todas as pessoas acreditam em nossas palavras, mas fico feliz que você recebeu as minhas assim, quero que saiba que elogio os textos porque escolho blogues que eu realmente gosto, para mim não é esforço algum ler a todos vocês meus camaradas de blogosfera, mas é como digo, incentivo a todos, porque é o incentivo que faz as pessoas crescerem, e todos precisamos crescer, e esse é o caminho, crescer cada vez mais, andar sempre olhando o horizonte, buscando sempre o topo.

    e tudo que fizemos na vida é assim, sempre se pode fazer melhor, a vida é igual na publicidade, na medicina, na sala de aula e na escrivania, porque precisamos fazer um mundo melhor, e como um dia já disse Raulzito, "não existe mais a classe dos artistas, porque todo homem produz a sua essência e revela arte".

    essa é a maneira que olho os meus textos e essa é a maneira que vejo os textos alheios, eu parto do seguinte ponto, vamos falar das coisas agradáveis, daquilo que realmente interessa, que é o bom, se fazemos o contrário, nos tornamos críticos que promovem aquilo que eles mesmo dizem não gostar.

    então quero te dizer que você escreve muito bem, e tenho certeza que contigo também acontece o que acontece comigo, eu por exemplo, gosto de ler meus textos antigos e perceber que os novos são melhores, eu consigo notar a minha evolução, saca? é como o skate, o violão, a cada dia se é mais preciso, contigo não deve ser diferente, principalmente porque tocar uma agência é complicado, já toquei uma e confesso que sei como é corrido para você, trabalhar e levar esse blogue, sei que deixa de dormir, de ler um livro, de tomar um banho quem sabe, para escrever, para atualizar o seu blogue, isso é grande, porque significa que enquanto o mundo dorme, você é um daqueles que empresta um pouco para que o mundo acorde.

    sei que você tem talento, sei que todo e qualquer homem pode tudo o que quiser, mas sei também que os homens de coração aberto tem a mente fresca e ativa, é o seu caso, percebo que você observa, pensa e escreve, é por isso que és tão grande, porque toda a vez que me devolve um comentário também está me dando uma força para continuar e evoluir, então eu venho cá para te devolver o teu comentário e trocar idéias contigo, é assim que as coisas funcionam, a gente junto e com a ajuda de tantos muitos criamos um anel, onde gira o bem e um futuro, se não melhor ao menos em ascenção.

    por isso nunca deixe de escrever e jamais páre de acretidar em mim, pode ter a certeza que quando algo te faltar e nada restar se de mim precisar, pode usar a tecnologia em seu favor, quem sabe eu não possa te dar um abraço, mas poderei te passar um msn, um endereço eletrônico qualquer, e na falta do abraço te enviarei apenas palavras, mas acredite, te darei hoje porque me devolverás amanhã, essa é a pureza da vida, o motor que faz as coisas acontecerem, o mundo girar e o mundo crescer, porque enquanto você escreve o mundo responde.

    sorte e luz.

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  14. Bem espirituoso o texto.. muito fera!

    - Brega é você me chamar de "gato". A maior gíria dos anos noventa, gata.

    hueuheahuhueaaeuuae..
    Parabens mlk..

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  15. Linda homenagem a Brasília, a memória, as sensações... A vida!

    E as cigarras cantam lá fora e aqui dentro.

    Beijos 'gato'!

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  16. vem buscar o teu Selo. vem.


    sorte e luz.

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  17. quando tudo é igual embora diferente mas continua a ser, a gente passa por cima até do que é brega.

    Beijoca, moço.

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  18. Maninho, muito legal o seu texto!!!
    Gostei, e além de ser legal ainda dá de nos sentirmos ali, presentes.
    Muito legal!!!
    Espero que consiga alcançar todos os seus sonhos e desejos!!!

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É isso aí, amigo, manda ver!