quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O caminho das folhas - Queda livre (Cap. 1)

Era 13 de setembro. Tom abriu os olhos de manhã. Estava com o rosto inchado. Sentia ressaca. Sua barba castanha estava desgrenhada na face. Sentiu um mormaço na boca. Procurou por Rafaela, mas ela não estava em casa. As janelas estavam todas abertas. Uma luz clara, de dia ensolarado, entrava por todos os lados. Ele levantou-se e caminhou de cueca e camisa sem manga branca pela casa. Coçou a bunda e fungou com o nariz. Tossiu e pigarreou. Na cozinha, um recado em cima da mesa. Ele levantou e aproximou o papel dos olhos. Estava sem lentes. “Fui ao Poço Azul com uns amigos, não me espere para o almoço. PS: A Ilka, do photo, te ligou. Disse que você pode ir buscar os quadros. Peguei o Ka. Beijos, mano”. Ele olhou o relógio de pingüim sobre a geladeira. Eram 9h20 e pouco. Pigarreou novamente e foi vestir-se. Era uma bela sexta-feira.
A agenda de Tom estava vazia. Ele gostava de reservar uma sexta por mês, pelo menos, para ficar com amigos, beber e olhar a cidade. Alguém tocou a campainha. Ele gritou que esperassem. Cuspiu a pasta na pia, bochechou, limpou a barba e os olhos e enxugou o rosto rapidamente, vestiu as calças desajeitadamente, e ainda descalço e com a blusa cavada branca, correu para abrir a porta sem pentear os cabelos. Quem seria? Quarto, corretor, cozinha, estúdio fotográfico, porta da rua. Era um policial militar. Ele abriu a porta e sorriu. O homem tinha um olhar estranho. Tom ficou sério. Por um momento, não era um policial, mas um homem fardado, e carregava consigo um fardo sobre a farda e o olhar de quem ia passá-lo adiante. O medo perpassou a garganta do jovem fotógrafo. Ele tossiu breve e contido. Tudo parecia eternamente lento, embora segundos se passassem. Eles se encaravam. Ele convidou o homem para entrar, mas a princípio ele não aceitou. O homem tinha um papel em mãos, e leu alguma coisa antes de falar...
- Senhor, o senhor é Thomas Braga?
- Algum problema?
- O senhor é irmão de Rafaela Stacciarine Braga?
- Rafaela? Sim. Por quê? Alguma coisa errada com ela? Ela está bem?
Tom sentiu o coração disparar. O que um policial estaria fazendo em sua casa pouco antes das 10h da manhã para falar sobre Rafaela? Ele não queria escutar o homem de cinza, queria apenas vê-la. Tentou não pensar no pior. O sangue subiu para sua cabeça. Seus olhos ficaram fixos no homem da lei. Ele esperou que ao pessoa diante dele dissesse mais alguma coisa.
- Senhor, sinto dizer, mas ela sofreu um grave acidente de carro, na estrada que dá acesso a Brazlândia. Não senhor. Sinto muito. Morreu antes mesmo do socorro chegar ao local. Acalme-se. Senhor Thomas, por favor apóie-se no meu braço. Isso. Vamos entrar. Venha comigo. Me guie pela casa. Procure respirar. Onde é a cozinha? Isso. Isso mesmo. Sente-se nessa cadeira. Vou pegar uma água para o senhor. Mantenha a cabeça abaixada, assim, sua pressão baixou muito. Quer que eu ligue para alguém? Não pode dirigir assim. O senhor tem alguém para te acompanhar no IML? O senhor terá de ir ao IML. Não é bom que o senhor dirija nesse estado. Quer que o leve?
- Não. Liga pra alguém. É melhor. Liga... Liga nesse número – aí na geladeira.
- Um momento senhor. Onde está o telefone?
- No estúdio, perto da porta.
- Só um instante. Já volto. Tome essa água. Quer que chame um médico?
- Não.
- Um momento. Alô! Senhor João? Aqui é o cabo Fontoura da Polícia Militar. Sim. Isso mesmo. Ricardo Fontoura. Estou na casa do senhor Thomas. Não, ele não está bem. Não. Ele perdeu um parente. Disse que eu poderia te ligar. Para o senhor vir vê-lo. Já está a caminho? Vou avisar. Sim. Por nada. Ok. Pode deixar. Senhor Thomas? O senhor está melhor? Tem certeza de que não quer que eu chame um médico? O João já está a caminho. Esse é meu número. Se precisar, pode ligar. Posso esperar por ele, se preferir...
- Não. Não quero. Vá embora, por favor. Muito obrigado. Preciso entender o que está acontecendo. Vá embora, por favor. Eu quero ficar só. Eu sei. Não, não vou fazer nada. Me dê licença. Saia da minha casa. Eu vou ao IML. Vou esperar o João. Já tenho seu celular. Muito obrigado. Agora, vá embora, por favor. Por favor.O cabo não foi realmente embora. Ficou na porta da casa de Thomas, com ouvidos acurados, escutando barulhos, com medo de que ele fizesse alguma besteira. Tom, por sua vez, não se importou de que o homem ficasse em sua porta. Nem o viu, para falar a verdade. Nem se lembrou dele depois de encostar a porta, que era de ferro, pesada, de um azul bem escuro, com um olho mágico no meio, e sobre o olho, do lado de fora, o número do apartamento: 111. Não sentia vontade de chorar. É como se não entendesse o que estava acontecendo. Não tinha alma, não tinha sentimentos. Estava pálido, vazio, sentia-se tonto e desorientado, e uma dor sem tamanho fazia com que suas energias se esvaíssem por todos os poros de seu corpo como uma torneira aberta que desperdiça água. Suava frio. Ele voltou para a cozinha e sentou-se novamente. O copo de água, ainda pela metade, estava inerte sobre a toalha de plástico amarelo que Rafaela tinha comprado. As canecas engraçadas da menina estavam dependuradas na parede, como olhos que o encaravam. O copo ainda sujo de leite estava sobre a pia, como um sorriso amarelo e sem jeito, pois ela nunca lavava louça pela manhã. A casa era intocada. Tudo transpirava a alegria jovial de Rafaela. Eles só tinham um ao outro. Ele foi entendendo aquilo. A notícia foi se misturando à realidade. Se misturando. Sua cabeça girava mais e mais. Rafaela estava no silêncio, na solidão, na ausência, em um recado que acidentalmente fora parar no chão, na foto dos garotos perdidos, no nariz de palhaço, no ladrilho laranja, nas roupas espalhadas no quarto de empregada, no porta-retratos, mas subitamente não estava mais ali. Ele deu um grito de agonia, liberando todo seu inconformismo, cerrando os punhos, se contorcendo. Bateu, em um espasmo violento, no copo, que se quebrou, cortando-lhe as costas da mão. O vidro e a água se espalharam pela mesa e pelo chão. Um pouco de sangue gotejou. Ele apoiou a cabeça nas mãos e os braços nas pernas e chorou como uma criança, e caiu no chão, em decúbito dorsal esquerdo, e encolheu-se em posição fetal, socando o piso, com o estômago pegando fogo, com as veias na fronte a ponto de explodirem, hora sussurrando, hora gritando, com lágrimas intermináveis e muco sujando seu rosto, sua barba, seus cabelos, na esperança que Deus ouvisse suas súplicas, seus palavrões, sua revolta, que Rafaela entrasse pela porta sorridente e prática, que fosse mentira, que fosse um trote ou um pesadelo, até a última réstia de força, afogado em agonia, e apenas sussurrava sonolento quando João, com seu casaco de flanela, também em prantos, o ergueu e o levou para o quarto sem dizer uma palavra. Num ato sereno em meio à tragédia, os amigos se arrumaram em um silêncio agônico, e dirigiram pelas vielas de Brasília rumo ao Instituto de Medicina Legal. Na Rádio Notícias, uma repórter falava do acidente que deixou dois jovens em coma, em estado grave, e fez uma vítima fatal, a estudante de arquitetura do Centro Universitário de Brasília, Rafaela Stacciarine Braga, de 19 anos. John desligou o aparelho antes que a matéria terminasse.

19 comentários:

  1. meu jovem, sinceramente eu nem sei o que dizer.


    ms posso te dizer que a folha mais interessante que poderia ler antes de dormir.


    parabéns.


    sorte e luz.

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  2. O que eu escrevo? É tão real, e eu não sei o que dizer pras pessoas em luto.

    Ah, eu não sei o que foi feito do link de comentários lá do meu blog. Eu tô apanhando desse BLOGSPOT. Queria te linkar lá (e outras pessoas), tentei e fiz foi petecar umas coisas. Vou procurar ajuda.



    E esperar o segundo capítulo dessa história.

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  3. Dói ser visitada pela ausência que causa desespero. Essa perda sempre ronda os pensamentos. Tenho dúvidas se a arte imita a vida ou o contrário.

    Well, queria dizer que a leitura surgiu com muitas imagens. Isso dá um curta!

    Beijos meus.

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  4. Só posso te dizer uma coisa, Luiz: quero, preciso e necessito, desesperadamente, ler o capítulo 2.
    E o 3.
    E o 4.

    Fabuloso!
    :)

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  5. To com a Jana.
    Preciso desesperadamente ler os proximos capitulos.
    É incrivel e estranho como a ausencia nos deixa desprotegidos.

    Beijos, querido.

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  6. Fiquei de cara.

    Tão real que chegou a me desconcertar. Deu um nó aqui no peito.

    Diz pra mim, isso é real?

    Beijoca, moço.

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  7. Triste, e triste, e triste, e aperta o peito, põe o nó nar garganta e dá vontade de gritar junto!

    Você é otimo.

    Beijos

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  8. A espectativa foi cumprida, babe. Leia as reações.

    aaah, anna k tem razão. mais um curta para produzirmos =)
    E ela seria ilka... ops... desculpa o spoiler, pessoas...


    cenas do próximo capitulo sendo anunciadas!

    amote =*

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  9. conheço sim, ele escreve muito bem não pe mesmo.


    sorte e luz.

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  10. O Afobório falou e disse.
    Você escreve muito bem.
    Adoro literatura sem dó, sem preocupação de ser higiênica.
    Meus parabéns.

    Abraços.

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  11. O que poderia esperar dessa Casa das Mentiras? Verdades, ou verossimilhanças, como essa. Descrições boas e sem verborragia. Aguardo próximas "cenas".

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  12. Oi maninho, tudo bem?
    Você escreve muito bem, espero que quando ei ficar um pouquinho mais velha eu escreva assim, que nem você.
    Estou com saudades, espero vê-lo novamente, para matar as saudades e nos divertirmos de montão... Se você não ficar puxando minha orelha, heim? :)

    beijinho

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  13. ai... poço azul e a estrada perigosa de Brazlândia... já presenciei mtos acidentes por ali... não gosto nem de lembrar...

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  14. auto-retrato de nós mesmos é uma boa! ;)
    Beijos ;*

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  15. Crash! Boom! Bang!!
    A morte ronda esta casa mentirosa!
    Estejamos preparados para a visita da "magra".

    abç.

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  16. CARA, VC É O CARA MAIS FODA QUE ACHEI POR ESSAS BANTAS INTERNETESCAS...
    MUUUUUUUITO
    MAS MUUUUUITO FODA MESMO!

    CAPÍTULO 2!!!!!!

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  17. Putz, segurou minha atenção até o final e conseguiu fazer com o que eu sentisse a dor que emanava do texto.
    Muito bom.
    Está linkado!
    Beijos

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  18. KD O CAPETOLO DOIS??

    RE-LI ESSE PELA TERCEIRA VEZ!!

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É isso aí, amigo, manda ver!