quarta-feira, 29 de abril de 2009

Boemia, justiça e Blogosfera no Poder

Se um dia Françoise segurou seu filho nos braços com amor de mãe triplicado, se é que Françoise era seu nome, humilhada, cuspida e com a cabeça raspada, ante a derrotada comunidade parisiense libertada pelas tropas aliadas, torturada e excluída por se deitar com nazistas, se um dia morreram por amar, por escrever, foram torturados por cantar transgressões em voz alta, por falar e agir em conformidade com o que pensam, não os artistas no sentido “ente” da palavra, mas os seres humanos que atuaram em conformidade com o que estava além do seu tempo, que guiados pelas nove musas filhas de Zeus e da Memória, que cruzam o tempo mudando de corte e de roupa, e seguem soprando abuso nos ouvidos dos poetas de todas as formas de expressão, se um dia aqueles que pintam letras, notas e músicas foram ou se um dia virão a ser , mais uma vez, culpados por dizer a verdade escabrosa, disfarçada apenas com arames farpados, então que quando este dia chegar, tenhamos coragem, seja em que vida for, seja com outro nome, outro corpo, outro sexo, que tenhamos a coragem de nos impor, e sofrer de todos esses infortúnios, na paga do belo contra o injurioso. Que sejamos artistas, tenhamos coragem...

Se já não existirem mais blogues, não haverá mais BLOGOSFERA NO PODER, mas a energia que nos une pode continuar lá, se acreditarmos.

Este blogue criado em março de 2003, já teve outro endereço, outro templete, outros textos que foram sumariamente retirados por ânsias e animosidades, já teve, inclusive, outras três redes de amigos blogueiros antes dessa (mas nunca tão bem consolidada e séria para mim), completou seis anos este ano. Nunca teve textos como os que escrevo agora. É um laboratório literário pessoal, e as experiências avançaram com minhas infinitas leituras e filmes que nunca chegarão ao fim. Na cabe colocar uma lista referências. Seria pedante demais. Mas cabe dizer que fui afrontado por “adultos” por diversas vezes, por que deveria ter lido isto ou aquilo antes de me dar ao trabalho de escrever tais e tais coisas, e que me arrisco demais por terrenos pantanosos que desconheço. Querem saber, eu rio da cara do perigo. Além do mais, posso não ter lido toda a obra de Machado, nem O Capital, nem outras tantas obras importantes que quiçá, virei a ler, mas retorno a pergunta aos sábios. Me digam vocês, se já leram as poucas e belas poesias de Yokohare, ou ficaram a admirar suas fotografias? Já leram as fascinantes histórias de Blindado, que ganhou vida pelo imaginário de botas pretas de Afobório? Já se deram ao trabalho de refletir sobre os manifestos quase diários de Jana Lauxen, ou deram atenção aos textos líricos de Flávia Brito? Como assim, nunca ouviram falar no Coleira do Cão, de Fabrício Romano, em Arlquim, ou nas críticas do Cinema e Bobagens, de Beto Canales, ou nas procelas e digressões de Luiz Gonzaga B. Jr.? As poesias e prosas de Anna Karla, do do Pequena Cidade: Âmbar, já leram? Não? Que absurdo! Sabem o que é isso? BLOGOSFERA NO PODER, meus senhores e minhas senhoras.

Este ano lanço meu primeiro conto, publicado em uma antologia conhecida como Assassinos S/A, da editora Multifoco. Progredi muito. É um resultado concreto. O primeiro de tantos outros, espero. Devo isso à minha querida Yoko (mais uma vez), que acreditou mais no que eu escrevo do que eu mesmo nos últimos dois anos, ao meu caro Denny, que foi o primeiro a se dar ao trabalho de ler textos meus e me enviar as correções de bom grado, à Jana, primeira blogueira que conheci capaz de transformar pensamentos em realidade e levar à sério o que faz como escritora, uma inspiração, ao Cavanhas, que desde a primeira vez que comentei no seu blog me respondeu com carinho, e me recebeu, e trocamos experiências mútuas e extremamente construtivas, e a todos aqueles que estando ou não na minha lista de amigos (são muitos, me desculpem por não nomear um a um de vocês como merecem), se linkaram mutuamente para formar uma corrente de escritores que varre o país. Me envolvi com projetos muito legais, como o E-blog e o Avant Garde. O que fazemos é importante. Talvez mais que possamos imaginar. Sempre digo, e não canso de me repetir, continuemos caminhando, passo a passo, consolidando cada conquista, em nome do nosso constante criar.

Por todos os poetas que vieram e que virão,
BLOGOSFERA NO PODER.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Ricos de tudo...

Um Buda magro e contente sentou-se junto aos neandertais em volta da fogueira. Eram homenzinhos baixos e loiros, com olhos claros como lagos. Alguns eram até broncos e altos, mas não passavam de 1,80 m. As mulheres eram belas e tinham cabelos desgrenhados e cabeças redondas. Cozinhavam, celebravam as estações, faziam adornos para a casa e para os Elementos da Fertilidade e tinham filhos. Faziam sexo e necessidades quando sentiam vontade, onde estivessem, pura e simplesmente, e viviam no verdadeiro Éden e na Arcádia, uma espécie de Devachan na Terra, correndo pelos descampados, sem pudores, caçando e vagando por entre pradarias, vestidos com peles de animais, flores e cipós. Como era bom fazer parte da estirpe dos Homo neanderthalensis.

O Buda esguio e risonho, um Ser de luz que estava e não estava ali ao mesmo tempo, aproximou-se atraído pelo olor do assado, sentou-se bem recebido como um Espírito da Floresta, e deliciou-se do gordo javali que os caçadores devoravam famintos. A mais nova do grupo, Bikha, estava grávida. Devia ter uns 16 anos. Mudou de lugar atraída e sentou-se feliz ao lado do Tathagata, para vê-lo saborear um belo pedaço de pernil de fera. O pai de Bikha já queria fazer um colar-ritual para seu genro, com os dentes densos e resistentes do gordo animal.

O Buda que Nada Dizia, da época em que os homens eram sábios e tolos, gostava de se divertir com as crianças bípedes em volta das fogueiras nas noites de lua nova, quando não havia também estrelas no céu, e os pinheiros e a chama que espanta os mosquitos iriam compor a casa-mundo das pequenas tribos. Eram oito ali, como o Nobre Caminho Óctuplo, mas faziam parte de uma tribo maior, e haviam se perdido a alguns dias e estavam bem felizes também. Todas as fêmeas estavam grávidas. Eram três mulheres e cinco homens. Deles nasceriam quatro monstrinhos brincalhões, meninos-lobo em número igual ao das Quatro Nobres Verdades.

Ainda havia muitos pelo mundo, mas já eram os últimos da espécie. Bikha teria gêmeos. Seria um parto bom e tranqüilo para os dois pequenos guerreiros-urso. Consegue imaginar como eles passeavam pelos terrenos outrora férteis onde hoje construímos shoppings e banheiros? Caçando como fantasmas sombrios pelos largos estacionamentos iluminados pela luz dos postes, ou fazendo fogueiras finas em vastas madeireiras e caminhando em free-shops com suas botas de couro de búfalo e cabelos longos e sujos? Como se nós é que fôssemos os fantasmas? O Buda ficava triste e feliz com a idéia de que todo aquele povo alegre ia dar lugar a outros homens na terra, e ninguém jamais saberia o que aconteceu de verdade. Como seria bom encontrá-los caçando nas florestas americanas nos dias de hoje, com suas religiões, lendas e mitos, e assando felizes suas caças tal qual este grupo, na entrada da bota itálica, às margens do São Francisco ou nas praias da Normandia.

Teggo, marido de Bikha, sentia-se feliz também. Olhava a amada com fascínio e encarava os olhos do monge que saboreava a carne assada. Ele correu, correu, correu e parou em silêncio. Nakhi-Rein estava em sua frente, e ao ver o genro se deter, jogou-se no chão de súbito e cobriu a cabeça e fechou os olhos com o nariz na terra, rezando à Grande Mãe. Ao ver aquilo, as famílias dispersas, como se fossem parte de um corpo só, e o eram, se detiveram sem respirar, olhando pelos olhos do mais forte. O javali ergueu a cabeça com as presas grandes e viris, alertado pelo repentino silêncio, e antes que pudesse mover os fortes músculos da pata em direção a um esconderijo seguro, antes sequer de poder cogitar essa possibilidade, foi alvejado por uma longa e fina flecha, e por outra logo em seguida, e agonizou com os olhos arregalados e a respiração ofegante, e foi cortado, rasgado, escalpelado, empalado e assado na própria gordura, salgado com cinzas, dividido com a pele crocante e a carne branca, e serviu de alimento suculento para aquele que ouvia e compreendia a Voz do Silêncio, e havia entendido a real natureza, ameaçadora e escorregadia, do Dharana.

O avatar tocou a mão gordinha e de dedos pequeninos e calejados de Bikha, e olhou feliz para Teggo e Nakhi-Rein, e todos se calaram. Então o Buda pegou um punhado de terra com a outra mão cuspiu nele e amacetou entre os dedos, e colocou sobre a palma alva da jovem sorridente, que tinha dentes brancos e fortes. Todos se calaram regozijando-se. Poucos entenderam realmente aquele gesto do Espírito da Floresta. O admirável Nakhi-Rein, conhecedor das plantas e dos murmúrios da montanha, amante das pedras e do rio, viúvo feliz que viu sua mulher queimar em uma pira sagrada repleta de cabeças de cervo que foram devorados em uma grande festa, pintor sacerdote de paredes de caverna, senhor da caça, sussurrou um pequeno verso que não estava diretamente ligado ao gesto sábio do Bikku no ouvido de Teggo, cujo olhar direcionado à noiva a fez também compreender: lama vale mais que palavras. E o Bodhisatwa foi embora contente e aceso no meio da noite, enquanto o grupo se amontoava em sonhos como um bando de leões, reunidos ao redor do fogo sagrado, onirizando que dançavam com o Cervo Rei, e pescavam com o Grande Urso Comedor de Salmões, e viviam em abundância com o Provedor de Girinos, e eram felizes com toda a panacéia de Deuses que existiam naquele obscuro período da história do Mundo, ao redor da Mãe, e que sagrados eram.