Um Buda magro e contente sentou-se junto aos neandertais em volta da fogueira. Eram homenzinhos baixos e loiros, com olhos claros como lagos. Alguns eram até broncos e altos, mas não passavam de 1,80 m. As mulheres eram belas e tinham cabelos desgrenhados e cabeças redondas. Cozinhavam, celebravam as estações, faziam adornos para a casa e para os Elementos da Fertilidade e tinham filhos. Faziam sexo e necessidades quando sentiam vontade, onde estivessem, pura e simplesmente, e viviam no verdadeiro Éden e na Arcádia, uma espécie de Devachan na Terra, correndo pelos descampados, sem pudores, caçando e vagando por entre pradarias, vestidos com peles de animais, flores e cipós. Como era bom fazer parte da estirpe dos Homo neanderthalensis.
O Buda esguio e risonho, um Ser de luz que estava e não estava ali ao mesmo tempo, aproximou-se atraído pelo olor do assado, sentou-se bem recebido como um Espírito da Floresta, e deliciou-se do gordo javali que os caçadores devoravam famintos. A mais nova do grupo, Bikha, estava grávida. Devia ter uns 16 anos. Mudou de lugar atraída e sentou-se feliz ao lado do Tathagata, para vê-lo saborear um belo pedaço de pernil de fera. O pai de Bikha já queria fazer um colar-ritual para seu genro, com os dentes densos e resistentes do gordo animal.
O Buda que Nada Dizia, da época em que os homens eram sábios e tolos, gostava de se divertir com as crianças bípedes em volta das fogueiras nas noites de lua nova, quando não havia também estrelas no céu, e os pinheiros e a chama que espanta os mosquitos iriam compor a casa-mundo das pequenas tribos. Eram oito ali, como o Nobre Caminho Óctuplo, mas faziam parte de uma tribo maior, e haviam se perdido a alguns dias e estavam bem felizes também. Todas as fêmeas estavam grávidas. Eram três mulheres e cinco homens. Deles nasceriam quatro monstrinhos brincalhões, meninos-lobo em número igual ao das Quatro Nobres Verdades.
Ainda havia muitos pelo mundo, mas já eram os últimos da espécie. Bikha teria gêmeos. Seria um parto bom e tranqüilo para os dois pequenos guerreiros-urso. Consegue imaginar como eles passeavam pelos terrenos outrora férteis onde hoje construímos shoppings e banheiros? Caçando como fantasmas sombrios pelos largos estacionamentos iluminados pela luz dos postes, ou fazendo fogueiras finas em vastas madeireiras e caminhando em free-shops com suas botas de couro de búfalo e cabelos longos e sujos? Como se nós é que fôssemos os fantasmas? O Buda ficava triste e feliz com a idéia de que todo aquele povo alegre ia dar lugar a outros homens na terra, e ninguém jamais saberia o que aconteceu de verdade. Como seria bom encontrá-los caçando nas florestas americanas nos dias de hoje, com suas religiões, lendas e mitos, e assando felizes suas caças tal qual este grupo, na entrada da bota itálica, às margens do São Francisco ou nas praias da Normandia.
Teggo, marido de Bikha, sentia-se feliz também. Olhava a amada com fascínio e encarava os olhos do monge que saboreava a carne assada. Ele correu, correu, correu e parou em silêncio. Nakhi-Rein estava em sua frente, e ao ver o genro se deter, jogou-se no chão de súbito e cobriu a cabeça e fechou os olhos com o nariz na terra, rezando à Grande Mãe. Ao ver aquilo, as famílias dispersas, como se fossem parte de um corpo só, e o eram, se detiveram sem respirar, olhando pelos olhos do mais forte. O javali ergueu a cabeça com as presas grandes e viris, alertado pelo repentino silêncio, e antes que pudesse mover os fortes músculos da pata em direção a um esconderijo seguro, antes sequer de poder cogitar essa possibilidade, foi alvejado por uma longa e fina flecha, e por outra logo em seguida, e agonizou com os olhos arregalados e a respiração ofegante, e foi cortado, rasgado, escalpelado, empalado e assado na própria gordura, salgado com cinzas, dividido com a pele crocante e a carne branca, e serviu de alimento suculento para aquele que ouvia e compreendia a Voz do Silêncio, e havia entendido a real natureza, ameaçadora e escorregadia, do Dharana.
O avatar tocou a mão gordinha e de dedos pequeninos e calejados de Bikha, e olhou feliz para Teggo e Nakhi-Rein, e todos se calaram. Então o Buda pegou um punhado de terra com a outra mão cuspiu nele e amacetou entre os dedos, e colocou sobre a palma alva da jovem sorridente, que tinha dentes brancos e fortes. Todos se calaram regozijando-se. Poucos entenderam realmente aquele gesto do Espírito da Floresta. O admirável Nakhi-Rein, conhecedor das plantas e dos murmúrios da montanha, amante das pedras e do rio, viúvo feliz que viu sua mulher queimar em uma pira sagrada repleta de cabeças de cervo que foram devorados em uma grande festa, pintor sacerdote de paredes de caverna, senhor da caça, sussurrou um pequeno verso que não estava diretamente ligado ao gesto sábio do Bikku no ouvido de Teggo, cujo olhar direcionado à noiva a fez também compreender: lama vale mais que palavras. E o Bodhisatwa foi embora contente e aceso no meio da noite, enquanto o grupo se amontoava em sonhos como um bando de leões, reunidos ao redor do fogo sagrado, onirizando que dançavam com o Cervo Rei, e pescavam com o Grande Urso Comedor de Salmões, e viviam em abundância com o Provedor de Girinos, e eram felizes com toda a panacéia de Deuses que existiam naquele obscuro período da história do Mundo, ao redor da Mãe, e que sagrados eram.
quarta-feira, 8 de abril de 2009
Ricos de tudo...
Marcadores:
Narrativas,
Neandertais,
Poesia
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mal sabem os homens caminhantes que agora habitam esta terra que um remanescente está entre eles. ignora sua sabedoria anscestral e participa de outros ritos e da construção de novos mitos.
ResponderEliminardear prudence...
=)
uau, isso que é estória.
ResponderEliminare esse cara, ele está por aí?
será que existe um deles?
nossa, acho que as pessoas precisam tomar cuidado, por que podem virar um delicioso churrasco no meio do parque central da cidade.
ehhehehe, bom demais.
Uau!
ResponderEliminarótimo.
Sempre escreve tão bem e, quase sempre, me deixa sem palavras.
beijão, querido.
muito legal,,,,
ResponderEliminarNo fundo das cousas, somos todos os mesmos que outrora fomos, o que mudou foi a caça, caçamo-nos uns aos outros, pelo prazer fino de exercer nosso instinto selvagem, caçamos mais bem vestidos.
ResponderEliminarQuero um livro seu Luizzz!:)
Besos
sim, somos a blogosfera no poder!
ResponderEliminarsorte e luz.
Simpatico o teus textos.
ResponderEliminarOlá Luis!
ResponderEliminarIsto é um SPAM CULTURAL !!!Brincadeira, eu sou de verdade... e estou te convidando pra dar um pulinho lá na TUDA, uma revista eletrônica que venho editando desde Janeiro...
Um abraço,
luiz, você sumiu! lindo o texto! beijo, espero que esteja tudo certo! :)
ResponderEliminarManinho, você escreve tão bem!!
ResponderEliminarFico impressionada!!
Estou com saudades!!
beijinhos
...nessa tarde quente eu lhe concedo...
ResponderEliminartchan, tchan, tchan, tchan!
O dom da lesma!
tchan, tchan, tchan, tchan!
Que segue lenta,
escrevendo em prata
notícias da natureza!
Pam pum pam, pam pum pam
Pam pum pam, pam pum pam