sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Com a mão nos olhos

O moço mudou de posição. Cansado da leitura sem óculos, e havia perdido seus óculos, levantou-se. Sua pele branca ficou marcada de vermelho pelas dobras dos músculos, da gordura e do lençol. Jogou o livro em cima do jornal, no chão. Olhou novamente para o caos do pequeno quarto alugado em busca das lentes, que não estavam de fato lá. Olhou para o porta-retrato com entes amados. A palavra “ente” é apropriada no caso. Não interessa aos leitores, por não ser mesmo do bico deles, saber quem sorria na imagem. O moço passou a mão nos olhos. Levantou a persiana. Queria iluminar a pequena toca enquanto ainda durasse o sol, e sentir a escuridão e o frio da noite, e só depois utilizar-se dos benefícios da vida moderna. Mas não resistiu, ligou o som. A imagem do menino morto no caixão o assombrava. O menino cinza-pálido no caixão, ceifado por um caminhoneiro alcoólatra que invadiu a faixa contrária. O caixão branco, as vestes brancas, as flores brancas, cercadas do negro-luto de nossa cultura. Ele afastava a imagem, que voltava. E por vezes a face do jovenzinho, que se tornara como um boneco feio em seu rigor-mortis, era substituída pela do filho de sua namorada, criança que ele tanto amava. E aquilo o estremecia. Era suficiente para encher seus olhos de lágrimas e seu coração de horror, e comungar com a dor daquela família que aquele agente da polícia civil acompanhou tão breve e marcantemente. Morreram a mãe, o pequenino, o primo do pequenino, e tia do pequenino. Sobreviveram o pai e a avó, sogra do homem, se é que pode-se dizer, em um caso duro como esse, que de fato sobreviveram. Eles mesmos diziam que não, que não haviam sobrevivido. E o pai, como qualquer cidadão mediano pode constatar, não sobrevivera, embora guardasse vida e consciência em seu corpo cada vez mais curvado e magro. As coisas sempre voltam em uma bagunça. Se perde uma caneta especial, e se ela está lá, logo se a encontra. O mesmo com uma jóia de família. O mesmo até com os sentimentos. Bem sabemos. Na confusão da alma, aquela velha paixão, aquele rancor, aquela alegria cândida e breve, sempre emergem e imergem. Se não aparecem, se não há um remorso ou um orgulho, é porque nunca estiveram lá, como os óculos perdidos. Mas você não perde uma mesa ou uma geladeira. Alguns traumas são como verdadeiras máquinas de lavar nas almas. O moço tomou um banho, trocou de roupa, arrumou um pouco a bagunça. Preparou-se para sair a noite. Também lhe vinha a mente a boca escancarada daquele outro homem que morreu com um tiro no peito e ficou com a cabeça pendendo para trás na cadeira. A bocarra escancarada com todos os dentes à mostra, e a roupa bonita de executivo, e as inúmeras moscas que entravam e saiam da goela seca, a face dura do pequeno em seu caixão, o tórax imóvel do atropelado, que imóvel fica estranho, como se estivesse torto mesmo sem estar, aqueles fantasmas que assombravam aquele homem sozinho em casa, ficavam o tempo todo fazendo-o pensar no medo dos medos que mais o assombrava por ele perceber que existia, o medo da farsa, da grande farsa conspiratória que ele mesmo era. Braços e pernas partidos, corações parados, cérebros como apenas medidas de quilo. Esse medo não é exclusivo. Todos têm, mas nem todos o percebem ou o reconhecem. Ele olhava para a arma no coldre, no cabide com o casaco, ao lado da porta do quarto, e sabia que tudo era uma grande farsa, e ele de alguma forma amava profundamente a farsa, mas por ser farsa, a odiava com a mesma loucura dos amantes traídos, que morrem de ciúmes e imaginam dores e assassinatos. As vezes até o executam. Um carro, um computador, uma banda larga, o direito de votar, o direito de falar e o de ficar calado, a presidência da república, o senhor ministro do comércio exterior, o doutor delegado que de doutor tinha tanto quanto um médico, isto é, nada, a morte a caminho de casa, os encontros e partidas, os portos, as constituições, os sistemas políticos, o parlamento e todos os sujos, e não há exceções, parlamentares demagogos, os capitalistas, os comunistas, os religiosos e suas religiões mortas-vivas, mais mortas que aquele ex-pai que nunca deixará, para sua infelicidade, de ser pai de um menino morto enquanto ele mesmo guiava o carro, o vômito na sarjeta, a sarjeta, a energia elétrica e as cirurgias bem sucedidas, toda aquela merda imunda, aquela grande bosta de mundo, que é este mesmo em que nos sentamos para navegar em um espaço informativo que também não existe, tudo isto que rodeava o agente, tudo uma farsa mentirosa, uma grande farsa, farsa, farsa, farsa. Mais vivos estão os que morreram e, como diz o sábio ditado, sabe-se lá proferido pela primeira vez por que ditador, o pior cego é aquele que não quer ver. Tudo uma grande farsa, com marketing, publicidade, mídia espontânea e muito neon. Nada que uma bala bem enfiada na cabeça não aclare as coisas. Nada que uma batida a caminho do trabalho ou de um encontro, ou na volta para casa, que um atropelamento, que um câncer maligno ou infarto fulminante não resolva. O agente olhou ao seu redor, tão vazio quanto cheio, com a alma em bagunça como qualquer um, tomou seus medicamentos, pegou a chave do carro e partiu. Sabia bem do que precisava. Tudo que precisava era de uns anos na cadeia com a bandidagem que ele ajudou a prender, aprendendo, um processo que resultasse numa demissão e num arraso financeiro tão grande, que, menos que a morte, só o restasse recomeçar, para que começasse verdade. Mas era um momento ínfimo aquele. Ele pegou os documentos e a chave do carro e foi comemorar o natal. Para adiantar a história e não nutrir expectativa quanto ao fim, adiantamos que ele foi, voltou, dormiu, trabalhou na delegacia e tudo o que manda o figurino roto e mal bolado da vida moderna. Menos casar-se. Isso não dava. Preferia amar em silêncio sua namorada e o menino, filho dela. Mas foi com insegurança. Sentia que poderia vacilar e bater o carro, e matar alguém, ou morrer, e que não tinha garantia de nada. Sentia que alguém poderia fazer o mesmo e matá-lo. Sentia que poderia ele mesmo dar cabo de sua existência com um tiro fácil, com uma overdose de alguma coisa, ou matar alguém. Matar quem mais amasse, para eternizá-lo, fosse seu irmão, sua mãe, sua mulher ou o menino que era seu protegido. Sentia tudo. Era transparente, por isso não era tão mal refletir a mentira, já que ele mesmo não era a mentira. E graças ao surdo Deus, se é que esse velho sacana anda mesmo por aí, ninguém de fato é a mentira. Uma pena que generalizações limitam e tornam-se elas mesmas mentiras em um mundo tão amplo. Mas ele sentia, nisso, um alento. Sensível a tudo, como o verdadeiro guerreiro, por mais que lhe doesse tanto ser quem fosse e uma farsa como qualquer outro ser humano o é, ao menos sentia a vacilante certeza de tentar ser puro, fosse como fosse. É claro que um raio ou um avião, um carro bomba, um atentado, uma queda burra na calçada poderiam matá-lo, mas foda-se. Ia viver. Viver e pronto. Custasse o que custasse. Sempre perguntaria à morte: “se fosse morrer agora, é aqui que eu queria estar?”, e ela sorriria, e ele saberia que se a resposta fosse “sim”, ele estaria bem, e se fosse “não”, ao menos saberia que precisava mudar de lugar ou de vontade. E ele mesmo acendeu o pavio da vela do bolo da irmã adotiva de sua prima, que fazia anos no dia 25, e era a mulher que ele verdadeiramente amava, e não a sua namorada. Era natal e não importava. Que coisa...

5 comentários:

  1. Que coisa mais trágica. Mas o texto excelente, como sempre.

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  2. O que você também não pode esquecer, ou melhor, a vida não nos faz ignorar jamais, seja durante a rotina que não se transforma, ou ainda no auge de toda e qualquer sutileza, no amar, nos dias que passam rápido e na irritação das pessoas comuns... babe, você continua sendo uma farsa. a maior delas talvez.

    pense nisso, querido.

    =*

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  3. Lanço-lhe um desafio...

    visto que seus textos estão cada vez mais duros e frios, talvez pelo fato de que seu trabalho assim o esteja, gostaria de ver aqui um texto puro e infantil...tão puro e infantil quanto nossos diálogos utópicos e saudosistas que há tempos não temos pelo google talk...

    gosto de você com alma de criança, não contaminado com as mazelas de adulto...

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É isso aí, amigo, manda ver!