sexta-feira, 11 de abril de 2008

Aquário

Leleo e Lili eram um casal radical. Ele fazia engenharia, e ela era recepcionista. Ele era negro, ela era loira, e nenhum dos dois ligava muito para o que a sociedade diz sobre ter e ser, e sobre viver como “manda o figurino” do teatro da vida moderna. Não eram hippies, não se apegavam a partidos políticos e evitavam grupinhos. A ânsia que aproximava a ambos era a vontade de fazer de suas vidas um benefício pra a existência de todos os planetas, o que não é possível quando se fica preso na politicagem matuta e infantil do reitor da universidade ou do presidente do Brasil.

O casal era feliz, e se, para isso, como um excelente formando em mecânica, ele precisasse abrir uma pequena oficina suja de graxa no interior mais interior possível de Pernambuco, ele abriria. Se, para permanecerem juntos ela precisasse de se formar em medicina em Oxford ou qualquer outra dessas “grandes” universidades repugnantes, ela se formaria. Que bom, no entanto, que não seria preciso. Poderiam, até mesmo, viver rodando o país, fazendo uso de seus pequenos conhecimentos para levar a vida. Quem, afinal, disse que posses, que casa e cachorro, piscina e meninada são indispensáveis para a felicidade? E não eram pessoas alheias a tudo, embora pudessem parecer. Lili e Leleu eram bem mais atentos que a maioria. Isso porque se ligavam à outros detalhes, realmente fundamentais, que eu ou você não somos capazes de ver, pois só sabemos querer e reclamar.

Lili, Eliza, mais precisamente, não havia terminado o segundo grau. E daí? E daí, nada. Não havia terminado e pronto. Qual era o problema? Isso não fazia dela uma pessoa menor. Muitos, no entanto, a viam dessa forma, como um cargo, como uma função, como uma maquinaria barulhenta que obedecia às ordens dos outros. Como o robô dos Jetsons que ficava na renomada “bal, bla, bla” empresa fulana-de-tal, e que era “claro”, facilmente substituível. Uma boa dose de auto-conhecimento, amor e força de vontade, no entanto, deixam na lama qualquer diploma. No mais, ela já preparava tudo para o dia em que iam ficar realmente juntos, para sempre juntos. Sonhava com o dia que iria trançar suas madeixas loiras no peito negro do amado, cansados no final do dia, felizes e satisfeitos com o simples fato de terem, mais uma vez, visto o sol nascer, ouvido o cantar dos pássaros e o latir dos cães e dado muito duro em suas funções.

Leleu, isto é, Leandro pensava como ela. Gostava muito do curso, mas o fazia só porque entender as variáveis dos seres máquinas e seus inúmeros elementais e seres viventes do mundo da ignição, das roldanas, porcas, manivelas e alavancas. Era como se fizesse, por exemplo, biologia, só que com as máquinas. No fundo, para ele, era a mesmíssima coisa. E era maravilhoso, também, ficar deitado no telhado com sua garota, olhando para o céu, sorrindo para aquele imenso moto-contínuo perfeito que girava psicologicamente sobre a cabeça dos amantes, dando a impressão da existência dos dias e das noites. Era um filósofo, e ela, a menina simples que atendia os telefonemas e usava malhas nas horas de folga, sua guia mis experiente, embora ela não pensasse nisso.

As famílias de ambos também eram curiosamente complicadas. A mãe de Leleu achava que ele merecia coisa melhor que uma recepcionista, enquanto o pai dele se preocupava constantemente com as ânsias de vida do garoto, com suas tão peculiares ambições, e se lamentava pelo jovem não pensar de um modo “correto”, como ele. Enquanto isso, a mãe de Lili acreditava que ela devia agarrar aquele homem e não soltar mais, pois era sua oportunidade de vida. O pai não se importava muito, afinal, o menino tinha dinheiro. E no fim, era bem difícil dizer com precisão quem era pior, afinal, bem no fundo, por trás de um absurdo de preconceitos que nem sonhamos, pois somos dotados deles e os vemos como virtudes, eles apenas amavam suas crianças e queriam vê-las crescer bem. Uma situação naturalmente aceita, já que se tratava da prole de ambas as famílias. Para a mãe, a fêmea, afinal, tinha o macho que a protegia, e o ancestral, no caso de Leandro, via seu descendente seguir passos diferentes, e temia não sabia se a linhagem seria mantida com sua devida pompa, afinal, a força hoje é o ter mais até que o poder. Enfim, era tudo amor, mas equilibrado em uma tênue linha de instintos de procriação e perpetuação da espécie que são indignos para os seres humanos, mas que, afinal de contas, ninguém liga.

E foi assim que um dia partiram. Ele não retirou o diploma, não pensou nisso e nem soube por que. Apenas o fez. Concluiu o curso e pronto, deram as mãos, compraram um carro para lá de acabado, consertaram, reformaram e estilizaram e escreveram atrás “recém-nascidos”, se é que me entendem, amarraram latinhas irritantes, e foram embora buzinando, com alguns trocados no bolso e muita alegria no coração. Onde gostassem, parariam para ficar, mas tinham um roteiro que ninguém soube. O mundo podia acabar, a terra podia tremer, o que conhecemos hoje como sistema poderia finalmente ruir, e nos poupar mais alguns séculos de absurdos sofrimentos desnecessários, afinal, quando nada for como acreditamos, acima de tudo, o ser humano continuará sendo ser humano, e isso é o que importa.

E os netos de Leleu e Lili, se eles vierem, vestindo roupas simples, com famílias pequenas e organizadas, em uma amável comunidade local de onde eu não sei, darão continuidade à perpetuação do amor e da condição humana, e olharam par o céu com aquela deliciosa sensação de reminiscência, de que se está contemplando algo que já era belo há 1000 vidas, e pensaram no homem, na inteligência do universo e no seu reflexo divino em nossos trabalhos, e a nova era será de amor e paz depois que as águas de Aquário passarem.

1 comentário:

É isso aí, amigo, manda ver!