sexta-feira, 16 de maio de 2008

Terra mãe

(Luiz Calcagno)

Ah, Portugal,
Portugal dos Açores,
Portugal dos meus amores,
Dos meus risos, de minhas dores,
Ah Portugal!

Terra Lusitânia,
Em tua gente não há infâmia,
E a mim todo, tu me ganhas,
E me perco em tuas vielas tamanhas,
Ah, minha eterna Lusitânia!

A poeira que te cobres,
O pó que te revestes,
As pedras que te tomam,
As histórias que te vestem,
Os pés que em ti caminham,
As jovens que se despem,
A gente que em ti se abriga,
As idéias que te enaltecem...

Ah, Portugal de todos os tratados,
De navegações e entardeceres dourados,
Ah, Portugal dos que não foram amados,
Das virgens cálidas e dos filhos Bastardos.
Em ti, encontro minha história,
Aqui contemplo meu passado.

Ah, Portugal,
Portugal dos Açores,
Portugal dos meus amores,
Dos meus risos, de minhas dores,
Ah Portugal!

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Sobre trilhos e trens...

No trem, bem como no carro, a paisagem italiana se perfilava diante de meus olhos. Mas agora eu já tinha um conhecimento maior do local, ou, melhor dizendo, eu já interagia com ele, ou me sentia, de alguma forma, parte daquele universo, mesmo que apenas como viajante. Castelos sobre cidades, o novo que parecia velho e a poeira histórica corriam em meio a campos abertos enquanto pessoas de todas as nacionalidades, com o correr das horas, ocupavam os bancos do vagão, e não era mais tão confortável me espalhar no lugar. Meu tênis sujo de terra de sítios arqueológicos descansava ao lado de meus pés de meias brancas.

As árvores eram belas, bem como o mato verde na manhã pálida em que ocupei tão confortavelmente o vagão de segunda categoria daquele velho trem. Fomos os primeiros a entrar, depois do maquinista e do fiscal dos tíquetes, claro. Ainda nem havia amanhecido quando arrastamos e carregamos nossos pertences pelas confusas ruas de Roma. O silêncio era a testemunha do caminho até a estação. Foi também naquele dia que senti a delícia que é viajar interminavelmente, embora já viesse fazendo isso há muito. O mundo é mesmo imenso a cada centímetro, bem como o tempo é longo segundo a segundo, bem como uma caminhada começa com o primeiro passo.

De tempos em tempos passávamos por túneis bizarros, e cruzávamos uma montanha por dentro, e sentíamos a pressão em nossos ouvidos. Era quase como ir às profundezas do Hades, mas não éramos sábios o suficiente para perceber. A escuridão era meada por corrimões laterais irregulares que serpenteavam a toda velocidade como imensas serpentes enquanto a máquina que nos levava parecia parada, e feixes de luz corriam pela janela no sentido contrário.

Sentado no banco azul, munido de um computador de colo e um livro emprestado sobre um velho poeta, com as bagagens sobre a cabeça e a barba por fazer, fui tornando tudo ao meu redor, e tudo que eu havia visto antes, ruínas e fontes, castelos e igrejas, túmulos e jardins, parte de meu ser, ou de minha personalidade, não importa muito. De qualquer forma era inspirador e maravilhoso. Era como sentir o mundo inteiro dentro do peito, e aquele comum vazio, aquele balão que apertava o coração parecia não estar mais lá. Era uma alegria ver passar trailers, tratores, ferros-velhos em meio ao nada e estradas solitárias que eu ousava sonhar um dia passar.

Aos poucos o sol subia no céu, a Terra girava, e a vegetação viva e dourada me lembrava de meu país, e eu sabia com certeza que amaria muito mais, mais como mátria ou frátria que como pátria, as terras Tupiniquins depois de ver as sombras e ouvir os sussurros do meu passado remoto. No entanto eu não ansiava voltar. Ainda não era hora e, na verdade, eu gostaria de ter ainda mais tempo que realmente tínhamos. Seria bom poder ficar uns seis meses rodando o mundo, e talvez mais. Mas a mim sobrava a esperança de ter novas oportunidades no futuro. Sabia, ao menos, que queria ver muito mais

Obviamente que voltaria a sentir a angústia da existência sem respostas em breve, mas não seria mais como antes, pois, naquele momento, no vagão, eu me transformava, e não me sentia aparte no universo, e era tão bom... Além disso a convivência com os camaradas de viagem nos tornava uma espécie de irmãos-primos, e era cômodo se alojar ao lado de um deles. Líamos, ouvíamos música, escrevíamos e conversávamos, isto no trem, enquanto a bruma da manhã, aos poucos, sumia como sonhos em um dia solitário de outono. Tínhamos pouco tempo, o que era muito, e muito a ver, o que era pouco, e o acima estava abaixo e o abaixo estava acima, embora isso, não fossemos capazes de ver, esmo diante de nossos narizes.

Nos quartos, cruzávamos nossas pernas, alongávamos nossos músculos e ríamos e descansávamos. Assuávamos os narizes, escarrávamos na pia e tirávamos nossos tênis. Nem sempre estávamos realmente juntos, nem sempre estávamos bem uns com os outros, nem sempre estávamos e felizes e dificilmente entendíamos tudo o que estava acontecendo ao mesmo tempo. Isso, no entanto era comum nas horas de impacto, quando nos colocávamos diante de uma coluna romana, de uma estátua grega, de uma pintura renascentista, de um palácio templário ou de um sarcófago egípcio.

As cidades iam ficando na lembrança, os países iam entrando no sangue e na alma, novas palavras em outros idiomas ameaçavam entrar no vocabulário, e até um português com sotaque diferente era motivo para levantar as orelhas como um cão atento. E o passaporte, a cada aeroporto e fronteira rodoviária, ia ganhando novos carimbos e ficando velho e usado. Era uma identidade diferente para mim. Ele me permitia ir a outros países e, por isso, parecia mais importante que o registro geral da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Carros, aviões, trens e barcos nos levavam de lá para cá, e tudo isso era significativo enquanto o trem corria sobre os trilhos e os americanos conversavam qualquer coisa alguns bancos da frente. Nós ansiávamos por Firenze, ou Florença, como queira, e era incrível demais para se traduzir em palavras.

Raul Granado

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Janelas antigas

Todo sangue derramado, toda guerra e paz, todo tratado, todo navio lançado ao mar leva o homem a algum lugar que ele não espera chegar. O pai do pai do pai conta uma história aparentemente sem valor, que é, na verdade, o único motivo para eu ou você estarmos aqui, se é que realmente estamos, e não somos apenas ecos do passado que insistem em se repetir. As janelas são inúmeras, e estamos ligados a reis e escravos por uma inesperada rede de acontecimentos que nos insere indiretamente nos cursos mais inusitados da trajetória humana. Uma roda, uma lança de metal, o fogo, a arquitetura, as maquinarias, a caça, a produção, as navegações, tudo está co-relacionado.

Há 465 anos, Estevão, sobrinho de um influente cavalheiro Templário, era mandado junto a criminosos e prostitutas em direção à colônia, para fugir da fogueira. Sua irmã e amante, grávida de uma criança proveniente de um incesto, não tinha a mesma sorte, e era queimada em praça pública enquanto o rapaz navegava nas águas brasileiras. A chegada do homem, que se casou e fez fortuna, resultou em uma linhagem familiar amazonense sem consciência de seu próprio passado, que, por parte da mãe do avô do pai, deu origem a um tal advogado doutor Rodrigo Oliveira, nascido em 15 de dezembro de 1979, que sofreu, com a namorada, de uma gravidez indesejada que mudou o curso da vida da jovem para sempre, e o separou de quem ele acreditava mais amar no mundo.

Foi assim que um dia, do outro lado do Atlântico, em Portugal, Flávia abriu a janela e sentiu a brisa fria das manhãs primaveris do país lusitano. Sob a montanha descansava o colosso Templário de Tomar. A cidade crescera a muito ao seu redor, mas ainda era pequena se comparada às outras. A amiga de Flávia, Isadora, ainda dormia encolhida nas cobertas. Maria deveria estar na outra cama, mas fugira, na madrugada para o leito de Henrique, no quarto ao lado. Lá os meninos roncavam sob a tutela da escuridão, exaustos e enfastiados. Do lado de fora, vielas e becos antigos e coloridos pareciam ressuscitar com a alvorada.

A viagem estava valendo todo o esforço. Tinham dinheiro o suficiente para cruzar a Europa, e quando a situação apertava, nada que um violão e um chapéu velho não ajudassem. Arte é arte, como diziam. Haviam agora fundado a própria ordem: era a “Ordem dos Saltimbancos Introspectivos do Cruzeiro do Sul”, a OSICS. A idéia era a velha filosofia Cínica. Estavam procurando, o tal homem, visto como humano, ego, Ser, dentro e fora de cada um, como combatentes e beatniks.

O sol estava pálido atrás das nuvens. Como nascia voltado para a janela do quarto da pensão, deviam estar de costas para o portão do castelo. Ela começou a comer a granola que havia sobrado e pensava que teriam que fazer compras mais tarde, e dar um jeito de lavar a roupa suja, afinal, não é porque tinham inventado um caminho de aventuras que deveriam fugir de suas necessidades básicas. Na verdade era exatamente o oposto. Precisavam manter-se o mais civilizados o possível, e de uma maneira consciente.

Foi quando a vida de Flávia começou a saltar em flashes em sua mente. Ela tentou segurar a imaginação, quando o som do canto de um pavão ao longe fez com que a moça se rendesse e se entregasse a si mesma. São aqueles momentos consigo mesmo que evitamos tanto. Flávia mergulhou em suas lembranças, revivendo os primeiros instantes de mudança que a levaram a uma pensão européia com um grupo de universitários artistas de nacionalidades variadas. De fato, nem tudo o que parece o pior, é necessariamente ruim.

Tinha 19 anos, e agora estava com 20. Naquela época, em Taguatinga, no Distrito Federal, no Brasil, havia abortado um bebê, e deixou, após o choque, todos que amava para trás, e mergulhou em uma jornada em busca de um real sentido para a vida. Foi quando, sob a recomendação de uma colombiana circense, cujo nome era Solidad, encontrou o grupo de aventureiros orientados por um tal de Padre Belga, que ela não chegou a conhecer. Tudo parecia sem sentido visto dos olhos do cotidiano. Ela mesma já havia pensado nisso. E no fim se questionou: o que, de fato, é o cotidiano, qual é o seu valor, e porque seguí-lo?
A claridade começou a invadir o quarto com mais intensidade e força, e Isadora escondeu-se ainda mais sob o edredom. Então um carro atropelou a jovem que caminhava desavisada e cheia de fantasias após um exame de sangue. Acabara de descobrir que estava no terceiro mês de gravidez. Foi tudo tão rápido. O pequeno, ou a pequena, nunca se soube ao certo, mal chegou em sua vida e logo foi embora, causando um estranho buraco na alma da garota. Uma ferida chamada dúvida, e que nunca se cicatrizaria.

Isadora levantou-se sonolenta, vencida pela manhã, carregando o peso do próprio corpo, e se arrastou para escovar os dentes. Murmúrios vinham também do quarto dos meninos. A cidade colorida, lá fora começava a despertar também. A poeira de mais de seiscentos anos de história de glória, heroísmo e conquista seria mais uma vez pisada pelos alheios autômatos ambulantes do século XXI. Flávia segurou firme a barriga e tentou levantar. Apoiou-se com a mão direita no asfalto. Não sabia ao certo como havia parado ali. Saia sangue de sua orelha, ela podia sentir, e também havia sangue em sua garganta. O líquido viscoso saltou de sua testa para seus olhos. Um homem desceu do carro desesperado, pedindo para ela não se levantar. Ela disse algo sobre estar grávida e depois acordou limpa e enfaixada, em uma cama de hospital, com o coração do tamanho de uma ervilha, batendo forte ara manter seu corpo vivo. Seu neném não estava mais lá, e ela sabia disso, não precisou nem de perguntar. Mesmo assim a confirmação, to derradeira quanto a própria morte, não tardou, e não parecia justo.

Jonas entrou sorrateiro no quarto das meninas e sentou na cama de Isadora pensando em algo para falar com Flávia, mas não veio nada em sua mente. Ela deu mais uma colherada na granola, que estava em sua caneca com o galo português pintado, arrumou o cabelo dread castanho claro, viu que o amigo estava sentado ali, respirou e voltou a si por uns breves instantes. Nada do que escolhia parecia de fato verdadeiro naqueles tempos, exceto estar ali naquele quarto, com aquele menino diferente dos outros, que sabia de sua dor só de olhar, mas também sabia de suas alegrias, e via alem da perda mais que qualquer outra pessoa.

O plano era ir para Lisboa, mas parecia que iam perder o primeiro ônibus, ou autocarro, como chamam em Portugal. Ele então quebrou o silêncio, sorriu e falou português com aquele forte sotaque argentino: “Yo ainda tengo un poquito de mel, usted pode colocar no suyo cereal...” Flávia sorriu de volta, viu na simplicidade da vida do momento uma boa dose de humanismo sincero, que não estava nas palavras em si, mas em todo o resto do que permeava a breve conversa. Contemplou o cabelo anelado do jovem e seu sorriso e olhos verdes e nariz comprido como quem dissesse que sim, e o mágico africano, Topper, entrou no quarto sorrindo, com a boca suja de pasta de dente. No banheiro, ou casa de banhos, como preferirem, Isadora deu descarga. Um motor de caminhão roncou ao longe.

Há 430 anos, Um comerciante navegador alemão se casava com uma viúva que era irmã de um influente templário do Porto da Gália. A mulher havia entrado para o convento após perder seus dois filhos para o destino, mas o comerciante a convenceu de largar o hábito. O homem a conheceu na Torre de Belém, que, na época, funcionava como hospital. Ele havia sobrevivido a um naufrágio a alguns quilômetros do porto. Isso, Flávia não podia imaginar.