No trem, bem como no carro, a paisagem italiana se perfilava diante de meus olhos. Mas agora eu já tinha um conhecimento maior do local, ou, melhor dizendo, eu já interagia com ele, ou me sentia, de alguma forma, parte daquele universo, mesmo que apenas como viajante. Castelos sobre cidades, o novo que parecia velho e a poeira histórica corriam em meio a campos abertos enquanto pessoas de todas as nacionalidades, com o correr das horas, ocupavam os bancos do vagão, e não era mais tão confortável me espalhar no lugar. Meu tênis sujo de terra de sítios arqueológicos descansava ao lado de meus pés de meias brancas.
As árvores eram belas, bem como o mato verde na manhã pálida em que ocupei tão confortavelmente o vagão de segunda categoria daquele velho trem. Fomos os primeiros a entrar, depois do maquinista e do fiscal dos tíquetes, claro. Ainda nem havia amanhecido quando arrastamos e carregamos nossos pertences pelas confusas ruas de Roma. O silêncio era a testemunha do caminho até a estação. Foi também naquele dia que senti a delícia que é viajar interminavelmente, embora já viesse fazendo isso há muito. O mundo é mesmo imenso a cada centímetro, bem como o tempo é longo segundo a segundo, bem como uma caminhada começa com o primeiro passo.
De tempos em tempos passávamos por túneis bizarros, e cruzávamos uma montanha por dentro, e sentíamos a pressão em nossos ouvidos. Era quase como ir às profundezas do Hades, mas não éramos sábios o suficiente para perceber. A escuridão era meada por corrimões laterais irregulares que serpenteavam a toda velocidade como imensas serpentes enquanto a máquina que nos levava parecia parada, e feixes de luz corriam pela janela no sentido contrário.
Sentado no banco azul, munido de um computador de colo e um livro emprestado sobre um velho poeta, com as bagagens sobre a cabeça e a barba por fazer, fui tornando tudo ao meu redor, e tudo que eu havia visto antes, ruínas e fontes, castelos e igrejas, túmulos e jardins, parte de meu ser, ou de minha personalidade, não importa muito. De qualquer forma era inspirador e maravilhoso. Era como sentir o mundo inteiro dentro do peito, e aquele comum vazio, aquele balão que apertava o coração parecia não estar mais lá. Era uma alegria ver passar trailers, tratores, ferros-velhos em meio ao nada e estradas solitárias que eu ousava sonhar um dia passar.
Aos poucos o sol subia no céu, a Terra girava, e a vegetação viva e dourada me lembrava de meu país, e eu sabia com certeza que amaria muito mais, mais como mátria ou frátria que como pátria, as terras Tupiniquins depois de ver as sombras e ouvir os sussurros do meu passado remoto. No entanto eu não ansiava voltar. Ainda não era hora e, na verdade, eu gostaria de ter ainda mais tempo que realmente tínhamos. Seria bom poder ficar uns seis meses rodando o mundo, e talvez mais. Mas a mim sobrava a esperança de ter novas oportunidades no futuro. Sabia, ao menos, que queria ver muito mais
Obviamente que voltaria a sentir a angústia da existência sem respostas em breve, mas não seria mais como antes, pois, naquele momento, no vagão, eu me transformava, e não me sentia aparte no universo, e era tão bom... Além disso a convivência com os camaradas de viagem nos tornava uma espécie de irmãos-primos, e era cômodo se alojar ao lado de um deles. Líamos, ouvíamos música, escrevíamos e conversávamos, isto no trem, enquanto a bruma da manhã, aos poucos, sumia como sonhos em um dia solitário de outono. Tínhamos pouco tempo, o que era muito, e muito a ver, o que era pouco, e o acima estava abaixo e o abaixo estava acima, embora isso, não fossemos capazes de ver, esmo diante de nossos narizes.
Nos quartos, cruzávamos nossas pernas, alongávamos nossos músculos e ríamos e descansávamos. Assuávamos os narizes, escarrávamos na pia e tirávamos nossos tênis. Nem sempre estávamos realmente juntos, nem sempre estávamos bem uns com os outros, nem sempre estávamos e felizes e dificilmente entendíamos tudo o que estava acontecendo ao mesmo tempo. Isso, no entanto era comum nas horas de impacto, quando nos colocávamos diante de uma coluna romana, de uma estátua grega, de uma pintura renascentista, de um palácio templário ou de um sarcófago egípcio.
As cidades iam ficando na lembrança, os países iam entrando no sangue e na alma, novas palavras em outros idiomas ameaçavam entrar no vocabulário, e até um português com sotaque diferente era motivo para levantar as orelhas como um cão atento. E o passaporte, a cada aeroporto e fronteira rodoviária, ia ganhando novos carimbos e ficando velho e usado. Era uma identidade diferente para mim. Ele me permitia ir a outros países e, por isso, parecia mais importante que o registro geral da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Carros, aviões, trens e barcos nos levavam de lá para cá, e tudo isso era significativo enquanto o trem corria sobre os trilhos e os americanos conversavam qualquer coisa alguns bancos da frente. Nós ansiávamos por Firenze, ou Florença, como queira, e era incrível demais para se traduzir em palavras.
Raul Granado
quarta-feira, 14 de maio de 2008
Sobre trilhos e trens...
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Narrativas
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Engraçado como pequenas coisas parecem não fazer muita diferença. este ano, sinta-se um agraciado: terá vivido duas primaveras. Já que aí é primavera e aqui o outono está gelando ossos e humores.
ResponderEliminarTanta coisa se tornou realidade no lado de cá. Nem imaginava que poucos dias pudessem verter uma vida inteira ao avesso. Nem imaginava.
Beijos, beijos ao som de susi q (ccr)...