sexta-feira, 9 de maio de 2008

Janelas antigas

Todo sangue derramado, toda guerra e paz, todo tratado, todo navio lançado ao mar leva o homem a algum lugar que ele não espera chegar. O pai do pai do pai conta uma história aparentemente sem valor, que é, na verdade, o único motivo para eu ou você estarmos aqui, se é que realmente estamos, e não somos apenas ecos do passado que insistem em se repetir. As janelas são inúmeras, e estamos ligados a reis e escravos por uma inesperada rede de acontecimentos que nos insere indiretamente nos cursos mais inusitados da trajetória humana. Uma roda, uma lança de metal, o fogo, a arquitetura, as maquinarias, a caça, a produção, as navegações, tudo está co-relacionado.

Há 465 anos, Estevão, sobrinho de um influente cavalheiro Templário, era mandado junto a criminosos e prostitutas em direção à colônia, para fugir da fogueira. Sua irmã e amante, grávida de uma criança proveniente de um incesto, não tinha a mesma sorte, e era queimada em praça pública enquanto o rapaz navegava nas águas brasileiras. A chegada do homem, que se casou e fez fortuna, resultou em uma linhagem familiar amazonense sem consciência de seu próprio passado, que, por parte da mãe do avô do pai, deu origem a um tal advogado doutor Rodrigo Oliveira, nascido em 15 de dezembro de 1979, que sofreu, com a namorada, de uma gravidez indesejada que mudou o curso da vida da jovem para sempre, e o separou de quem ele acreditava mais amar no mundo.

Foi assim que um dia, do outro lado do Atlântico, em Portugal, Flávia abriu a janela e sentiu a brisa fria das manhãs primaveris do país lusitano. Sob a montanha descansava o colosso Templário de Tomar. A cidade crescera a muito ao seu redor, mas ainda era pequena se comparada às outras. A amiga de Flávia, Isadora, ainda dormia encolhida nas cobertas. Maria deveria estar na outra cama, mas fugira, na madrugada para o leito de Henrique, no quarto ao lado. Lá os meninos roncavam sob a tutela da escuridão, exaustos e enfastiados. Do lado de fora, vielas e becos antigos e coloridos pareciam ressuscitar com a alvorada.

A viagem estava valendo todo o esforço. Tinham dinheiro o suficiente para cruzar a Europa, e quando a situação apertava, nada que um violão e um chapéu velho não ajudassem. Arte é arte, como diziam. Haviam agora fundado a própria ordem: era a “Ordem dos Saltimbancos Introspectivos do Cruzeiro do Sul”, a OSICS. A idéia era a velha filosofia Cínica. Estavam procurando, o tal homem, visto como humano, ego, Ser, dentro e fora de cada um, como combatentes e beatniks.

O sol estava pálido atrás das nuvens. Como nascia voltado para a janela do quarto da pensão, deviam estar de costas para o portão do castelo. Ela começou a comer a granola que havia sobrado e pensava que teriam que fazer compras mais tarde, e dar um jeito de lavar a roupa suja, afinal, não é porque tinham inventado um caminho de aventuras que deveriam fugir de suas necessidades básicas. Na verdade era exatamente o oposto. Precisavam manter-se o mais civilizados o possível, e de uma maneira consciente.

Foi quando a vida de Flávia começou a saltar em flashes em sua mente. Ela tentou segurar a imaginação, quando o som do canto de um pavão ao longe fez com que a moça se rendesse e se entregasse a si mesma. São aqueles momentos consigo mesmo que evitamos tanto. Flávia mergulhou em suas lembranças, revivendo os primeiros instantes de mudança que a levaram a uma pensão européia com um grupo de universitários artistas de nacionalidades variadas. De fato, nem tudo o que parece o pior, é necessariamente ruim.

Tinha 19 anos, e agora estava com 20. Naquela época, em Taguatinga, no Distrito Federal, no Brasil, havia abortado um bebê, e deixou, após o choque, todos que amava para trás, e mergulhou em uma jornada em busca de um real sentido para a vida. Foi quando, sob a recomendação de uma colombiana circense, cujo nome era Solidad, encontrou o grupo de aventureiros orientados por um tal de Padre Belga, que ela não chegou a conhecer. Tudo parecia sem sentido visto dos olhos do cotidiano. Ela mesma já havia pensado nisso. E no fim se questionou: o que, de fato, é o cotidiano, qual é o seu valor, e porque seguí-lo?
A claridade começou a invadir o quarto com mais intensidade e força, e Isadora escondeu-se ainda mais sob o edredom. Então um carro atropelou a jovem que caminhava desavisada e cheia de fantasias após um exame de sangue. Acabara de descobrir que estava no terceiro mês de gravidez. Foi tudo tão rápido. O pequeno, ou a pequena, nunca se soube ao certo, mal chegou em sua vida e logo foi embora, causando um estranho buraco na alma da garota. Uma ferida chamada dúvida, e que nunca se cicatrizaria.

Isadora levantou-se sonolenta, vencida pela manhã, carregando o peso do próprio corpo, e se arrastou para escovar os dentes. Murmúrios vinham também do quarto dos meninos. A cidade colorida, lá fora começava a despertar também. A poeira de mais de seiscentos anos de história de glória, heroísmo e conquista seria mais uma vez pisada pelos alheios autômatos ambulantes do século XXI. Flávia segurou firme a barriga e tentou levantar. Apoiou-se com a mão direita no asfalto. Não sabia ao certo como havia parado ali. Saia sangue de sua orelha, ela podia sentir, e também havia sangue em sua garganta. O líquido viscoso saltou de sua testa para seus olhos. Um homem desceu do carro desesperado, pedindo para ela não se levantar. Ela disse algo sobre estar grávida e depois acordou limpa e enfaixada, em uma cama de hospital, com o coração do tamanho de uma ervilha, batendo forte ara manter seu corpo vivo. Seu neném não estava mais lá, e ela sabia disso, não precisou nem de perguntar. Mesmo assim a confirmação, to derradeira quanto a própria morte, não tardou, e não parecia justo.

Jonas entrou sorrateiro no quarto das meninas e sentou na cama de Isadora pensando em algo para falar com Flávia, mas não veio nada em sua mente. Ela deu mais uma colherada na granola, que estava em sua caneca com o galo português pintado, arrumou o cabelo dread castanho claro, viu que o amigo estava sentado ali, respirou e voltou a si por uns breves instantes. Nada do que escolhia parecia de fato verdadeiro naqueles tempos, exceto estar ali naquele quarto, com aquele menino diferente dos outros, que sabia de sua dor só de olhar, mas também sabia de suas alegrias, e via alem da perda mais que qualquer outra pessoa.

O plano era ir para Lisboa, mas parecia que iam perder o primeiro ônibus, ou autocarro, como chamam em Portugal. Ele então quebrou o silêncio, sorriu e falou português com aquele forte sotaque argentino: “Yo ainda tengo un poquito de mel, usted pode colocar no suyo cereal...” Flávia sorriu de volta, viu na simplicidade da vida do momento uma boa dose de humanismo sincero, que não estava nas palavras em si, mas em todo o resto do que permeava a breve conversa. Contemplou o cabelo anelado do jovem e seu sorriso e olhos verdes e nariz comprido como quem dissesse que sim, e o mágico africano, Topper, entrou no quarto sorrindo, com a boca suja de pasta de dente. No banheiro, ou casa de banhos, como preferirem, Isadora deu descarga. Um motor de caminhão roncou ao longe.

Há 430 anos, Um comerciante navegador alemão se casava com uma viúva que era irmã de um influente templário do Porto da Gália. A mulher havia entrado para o convento após perder seus dois filhos para o destino, mas o comerciante a convenceu de largar o hábito. O homem a conheceu na Torre de Belém, que, na época, funcionava como hospital. Ele havia sobrevivido a um naufrágio a alguns quilômetros do porto. Isso, Flávia não podia imaginar.

Sem comentários:

Enviar um comentário

É isso aí, amigo, manda ver!