Ventava e fazia frio. Hermes estava sentado sobre a canga de Maria, na areia da praia em volta da fogueira, com os pés descalços. Era uma noite sem estrelas no Havaí. Só se podia ver as espumas brancas do Oceano quebrando na costa. O resto se confundia com a escuridão do céu. O barulho, a canção tranqüilizadora e repetitiva da maré cheia era o pano de fundo para as conversas da trupe. Afonso e Ednarla estavam abraçados, conversando e brincando com as mãos, Tobias dedilhava a esmo o violão e Marisa dormia na mochila do músico. A chama crepitava e trepidava como uma salamandra raivosa, e refletia no olho do soldado e da médica, que se encaravam mutuamente, cada um de um lado do fogo. Ele contava sua história. Os outros ouviam. Principalmente ela.
- Meu pai era espanhol e minha mãe americana. Nasci em Bolder, no Colorado, mas passei boa parte da minha infância no Brooklyn. Aos doze ganhei um torneio de karate local e um velhinho amigo de meu pai pediu que ele o deixasse me treinar nas artes marciais. Foi aí que começou minha carreira militar. Meu velho, que vê o mundo bem diferente das outras pessoas, a contragosto de minha mãe, deixou que ele me levasse para longe. Passei cinco anos fora de casa, e quando voltei, fui praticamente direto para o quartel. Passei oito meses na minha velha rua, apenas. Fiz algumas visitas aos coroas enquanto treinava, bem esporádicas, e, por mais que a situação me revoltasse a maior parte do tempo, até porque não entendia a proporção daquilo, eu sabia que me fazia mais bem do que mal.
- E como foi que ele te treinou?
Perguntou Afonso desinteressadamente. Hermes olhou para as chamas por uns segundos, olhou novamente para Maria, de olhos grandes, pele negra e cabelo encaracolado, fitou o céu e então continuou.
- Para começar, não aprendi tecnicamente a dar um único golpe. A princípio, na verdade, me pareceu que não. Mas depois, no exército, me destaquei facilmente em tudo que fiz. Achei, sinceramente que estava sendo explorado, escravizado, no início, mas depois vi que era loucura minha. Acontece que passei dois anos e meio trabalhando de lenhador. Fazia só o bruto. Era pequeno, foi difícil no começo, mas fui pegando corpo, força, aprendendo os macetes, e logo o trabalho pegou ritmo. Eu me tornei rude, e as vezes ajudava os fazendeiros da regiam a segurarem vacas que pariam e outras coisas. Foram dois anos e meio. No final, era quase perfeito. Como comecei cedo, foi mais fácil evoluir no processo, julgo. A noite tinha aulas sobre temas do mundo de uma forma bem mais profunda que vemos nas escolas, e melhor, sem provas ou exercícios. Um dia cortei uma pilha de madeiras com tanta disciplina e perfeição que meu mestre me passou outro trabalho. Ele disse que eu havia cumprido a primeira parte do treinamento. Naquela época eu já estava confiante, embora não soubesse ao certo aonde aquilo ia me levar. Morávamos em uma choupana isolada. Era tudo muito simples. O velho era mexicano, e nunca me disse seu verdadeiro nome. Todos o chamavam de O Mais Velho, e o tratavam como um líder, um pai, um médico e um conselheiro, e tinha gente que dizia que ele tinha mais de duzentos anos. Tinha ou tem. Não sei ao certo. Depois que voltei não consegui mais entrar em contato com ele, mais por força das circunstâncias. Mas gostaria sinceramente de vê-lo e mostrar o homem que me tornei.
- E qual foi o outro trabalho?
Maria perguntou. Hermes queria acabar com a conversa e beijá-la ali mesmo, mas adorava contar aquela história, e continuou. Todos sentiam o clima entre os dois, que eram os únicos descomprometidos na turma de viajantes que se reuniu por acaso em uma praia havaiana.
- Bem... Tudo era muito humilde mesmo. Ele vivia com o mínimo do mínimo. Eu só tinha permissão para beber e comer se realmente estivesse com fome e sede. No início tinha que sofrer um pouco para ele acreditar. Depois eu me adaptei a disciplina e ele passou a confiar mais em mim também. O fato é que tudo era muito pobre e simples, exceto uma cristaleira antiga. Era uma peça delicadíssima, linda, toda feita em vidro e cristal, com pequenas partes de pedras coloridas encrustradas, também muito sensíveis, e que mudavam de cor de acordo com o clima. Era tudo frágil, mas equilibrado, e era cheia de louças, porcelanas, taças em estantes de espessura muito fina. As portas eram de vidro com dobraduras de madeira delicadamente abraçadas ao material e o fundo era de espelhos que confundiam os olhos dos admiradores. As peças eram dispostas com pequenos bonecos mitológicos astecas pesados, de ferro, entre elas. Cada um tinha seu lugar exato para manter o equilíbrio do todo, e apesar de ser tudo tão exuberante e belo, e delicado, que eu sequer ousara me aproximar desde que cheguei à casa, era muito sujo e empoeirado. Meu próximo trabalho, depois de ser o melhor lenhador da região, e o mais novo também, era limpara diariamente toda a cristaleira, e dispor novamente cada peça em seu equilibrado e devido lugar com a mesma maestria com que foram colocadas antes. E, obviamente, sem quebrar nada.
- Que loucura!
Ednarla comentou. Hermes sorriu.
- Foi difícil, claro. Mas consegui não quebrar nada. Por mais limpo que ficasse, no entanto, no dia seguinte estava suja como em um conto de fadas, como se eu nunca houvesse limpado. E eu tinha que começar o delicado serviço novamente, do zero, o que, quando peguei o jeito, durava cerca de doze horas para se concluir. Em geral, de seis da manhã ás seis da tarde, quando tinha aulas de geografia, história, filosofia e religião, dependendo do dia. Depois de dois anos e meio fazendo isso, um dia, pela manhã, não encontrei as prateleiras ou as peças sujas. Apenas o senhor, sorrindo, dizendo que eu tinha uma prova. Ele me levou para um desfiladeiro que tinha uma corda que ia da beirada até uma arvore alta. A prova era ir até a metade do caminho e voltar se equilibrando. Cair, obviamente, significava morrer nas pedras ou no rio lá embaixo. Ele fez uma vez o trajeto, bem rápido, para me mostrar como devia ser. E eu fui tremendo em seguida. Até a metade, eu me equilibrei, mas se devia ser como ele fez, foi um fiasco, mas quando me virei, pareceu que condensei e compreendi tudo que o velho me ensinara. Foram cinco anos em cinco segundos, e voltei como se andasse normalmente aqui na praia. Tudo valeu a pena por aquele breve momento, e aquele breve momento fez com que tudo valesse. O resultado disso, não vou me alongar, é que fui o melhor fuzileiro do exército americano em Serra Leoa, sem a menor dificuldade, sinceramente.
- E como podemos saber se é verdade? Como podemos saber se você não está só inventando tudo isso?
Maria perguntou com um ar de desconfiança. Nisso, Hermes debruçou-se para frente, com uma mão na areia gelada e outra no fogo, na brasa, e beijou a jovem. Quando a menina percebeu a posição do rapaz, apesar de retribuir o beijo, sobressaltou-se como se estivesse diante de uma aberração. Ele sorriu quando seus lábios se separaram. Ela ofegava olhando a mão do rapaz. Todos estavam chocados, menos Tobias e Marisa, que tinha acordado no fim da história, e que já conheciam o rapaz. Ele voltou para o seu lugar sobre a canga da jovem médica. Seu braço não tinha sinais de queimaduras sequer nos pelos. Por outro lado, a areia onde ele apoiara a outra mão fumegava. Maria se lembrou então do curandeiro que tirava balas de corpos com os dedos, sem agravar a situação dos pacientes, que se curavam mais rápido que se tratados em meios tradicionais, no Peru, no começo de sua carreira, e foi atrás de Hermes, que havia se levantado para por os pés na água.
quarta-feira, 4 de junho de 2008
A praia das ilusões...
Marcadores:
Narrativas
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=)
ResponderEliminarSuperou a série das montanhas. E olha que tem poucas linhas.
com Z era mais você...
ResponderEliminarB, b.