O moço mudou de posição. Cansado da leitura sem óculos, e havia perdido seus óculos, levantou-se. Sua pele branca ficou marcada de vermelho pelas dobras dos músculos, da gordura e do lençol. Jogou o livro em cima do jornal, no chão. Olhou novamente para o caos do pequeno quarto alugado em busca das lentes, que não estavam de fato lá. Olhou para o porta-retrato com entes amados. A palavra “ente” é apropriada no caso. Não interessa aos leitores, por não ser mesmo do bico deles, saber quem sorria na imagem. O moço passou a mão nos olhos. Levantou a persiana. Queria iluminar a pequena toca enquanto ainda durasse o sol, e sentir a escuridão e o frio da noite, e só depois utilizar-se dos benefícios da vida moderna. Mas não resistiu, ligou o som. A imagem do menino morto no caixão o assombrava. O menino cinza-pálido no caixão, ceifado por um caminhoneiro alcoólatra que invadiu a faixa contrária. O caixão branco, as vestes brancas, as flores brancas, cercadas do negro-luto de nossa cultura. Ele afastava a imagem, que voltava. E por vezes a face do jovenzinho, que se tornara como um boneco feio em seu rigor-mortis, era substituída pela do filho de sua namorada, criança que ele tanto amava. E aquilo o estremecia. Era suficiente para encher seus olhos de lágrimas e seu coração de horror, e comungar com a dor daquela família que aquele agente da polícia civil acompanhou tão breve e marcantemente. Morreram a mãe, o pequenino, o primo do pequenino, e tia do pequenino. Sobreviveram o pai e a avó, sogra do homem, se é que pode-se dizer, em um caso duro como esse, que de fato sobreviveram. Eles mesmos diziam que não, que não haviam sobrevivido. E o pai, como qualquer cidadão mediano pode constatar, não sobrevivera, embora guardasse vida e consciência em seu corpo cada vez mais curvado e magro. As coisas sempre voltam em uma bagunça. Se perde uma caneta especial, e se ela está lá, logo se a encontra. O mesmo com uma jóia de família. O mesmo até com os sentimentos. Bem sabemos. Na confusão da alma, aquela velha paixão, aquele rancor, aquela alegria cândida e breve, sempre emergem e imergem. Se não aparecem, se não há um remorso ou um orgulho, é porque nunca estiveram lá, como os óculos perdidos. Mas você não perde uma mesa ou uma geladeira. Alguns traumas são como verdadeiras máquinas de lavar nas almas. O moço tomou um banho, trocou de roupa, arrumou um pouco a bagunça. Preparou-se para sair a noite. Também lhe vinha a mente a boca escancarada daquele outro homem que morreu com um tiro no peito e ficou com a cabeça pendendo para trás na cadeira. A bocarra escancarada com todos os dentes à mostra, e a roupa bonita de executivo, e as inúmeras moscas que entravam e saiam da goela seca, a face dura do pequeno em seu caixão, o tórax imóvel do atropelado, que imóvel fica estranho, como se estivesse torto mesmo sem estar, aqueles fantasmas que assombravam aquele homem sozinho em casa, ficavam o tempo todo fazendo-o pensar no medo dos medos que mais o assombrava por ele perceber que existia, o medo da farsa, da grande farsa conspiratória que ele mesmo era. Braços e pernas partidos, corações parados, cérebros como apenas medidas de quilo. Esse medo não é exclusivo. Todos têm, mas nem todos o percebem ou o reconhecem. Ele olhava para a arma no coldre, no cabide com o casaco, ao lado da porta do quarto, e sabia que tudo era uma grande farsa, e ele de alguma forma amava profundamente a farsa, mas por ser farsa, a odiava com a mesma loucura dos amantes traídos, que morrem de ciúmes e imaginam dores e assassinatos. As vezes até o executam. Um carro, um computador, uma banda larga, o direito de votar, o direito de falar e o de ficar calado, a presidência da república, o senhor ministro do comércio exterior, o doutor delegado que de doutor tinha tanto quanto um médico, isto é, nada, a morte a caminho de casa, os encontros e partidas, os portos, as constituições, os sistemas políticos, o parlamento e todos os sujos, e não há exceções, parlamentares demagogos, os capitalistas, os comunistas, os religiosos e suas religiões mortas-vivas, mais mortas que aquele ex-pai que nunca deixará, para sua infelicidade, de ser pai de um menino morto enquanto ele mesmo guiava o carro, o vômito na sarjeta, a sarjeta, a energia elétrica e as cirurgias bem sucedidas, toda aquela merda imunda, aquela grande bosta de mundo, que é este mesmo em que nos sentamos para navegar em um espaço informativo que também não existe, tudo isto que rodeava o agente, tudo uma farsa mentirosa, uma grande farsa, farsa, farsa, farsa. Mais vivos estão os que morreram e, como diz o sábio ditado, sabe-se lá proferido pela primeira vez por que ditador, o pior cego é aquele que não quer ver. Tudo uma grande farsa, com marketing, publicidade, mídia espontânea e muito neon. Nada que uma bala bem enfiada na cabeça não aclare as coisas. Nada que uma batida a caminho do trabalho ou de um encontro, ou na volta para casa, que um atropelamento, que um câncer maligno ou infarto fulminante não resolva. O agente olhou ao seu redor, tão vazio quanto cheio, com a alma em bagunça como qualquer um, tomou seus medicamentos, pegou a chave do carro e partiu. Sabia bem do que precisava. Tudo que precisava era de uns anos na cadeia com a bandidagem que ele ajudou a prender, aprendendo, um processo que resultasse numa demissão e num arraso financeiro tão grande, que, menos que a morte, só o restasse recomeçar, para que começasse verdade. Mas era um momento ínfimo aquele. Ele pegou os documentos e a chave do carro e foi comemorar o natal. Para adiantar a história e não nutrir expectativa quanto ao fim, adiantamos que ele foi, voltou, dormiu, trabalhou na delegacia e tudo o que manda o figurino roto e mal bolado da vida moderna. Menos casar-se. Isso não dava. Preferia amar em silêncio sua namorada e o menino, filho dela. Mas foi com insegurança. Sentia que poderia vacilar e bater o carro, e matar alguém, ou morrer, e que não tinha garantia de nada. Sentia que alguém poderia fazer o mesmo e matá-lo. Sentia que poderia ele mesmo dar cabo de sua existência com um tiro fácil, com uma overdose de alguma coisa, ou matar alguém. Matar quem mais amasse, para eternizá-lo, fosse seu irmão, sua mãe, sua mulher ou o menino que era seu protegido. Sentia tudo. Era transparente, por isso não era tão mal refletir a mentira, já que ele mesmo não era a mentira. E graças ao surdo Deus, se é que esse velho sacana anda mesmo por aí, ninguém de fato é a mentira. Uma pena que generalizações limitam e tornam-se elas mesmas mentiras em um mundo tão amplo. Mas ele sentia, nisso, um alento. Sensível a tudo, como o verdadeiro guerreiro, por mais que lhe doesse tanto ser quem fosse e uma farsa como qualquer outro ser humano o é, ao menos sentia a vacilante certeza de tentar ser puro, fosse como fosse. É claro que um raio ou um avião, um carro bomba, um atentado, uma queda burra na calçada poderiam matá-lo, mas foda-se. Ia viver. Viver e pronto. Custasse o que custasse. Sempre perguntaria à morte: “se fosse morrer agora, é aqui que eu queria estar?”, e ela sorriria, e ele saberia que se a resposta fosse “sim”, ele estaria bem, e se fosse “não”, ao menos saberia que precisava mudar de lugar ou de vontade. E ele mesmo acendeu o pavio da vela do bolo da irmã adotiva de sua prima, que fazia anos no dia 25, e era a mulher que ele verdadeiramente amava, e não a sua namorada. Era natal e não importava. Que coisa...
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
Ciclo de leituras
Então Tudor, paramentado com sua armadura, suas armas de guerreiro, sua capa e sua touca de cabeça de urso mágica, exausto após ter tomado a água do Rio do Esquecimento, adormeceu profundamente, sem perceber que ao seu redor todas as árvores e flores e frutos da floresta mudavam de lugar.
Por isso a floresta era chamada de Trilha da Perdição. Para sair de lá eram precisos vários dias, e era preciso dormir para descansar. Ficaria o jovem perdido eternamente entre as belas e mortais folhagens tropicais? Haveria uma saída? Ele voltaria a ver sua querida Bô-Bô e seu amado irmão Ishtar? Isso é o que veremos no próximo capítulo...
Não! Eu quero ouvir mais! Eu sei que você quer ouvir mais, mas agora é hora de dormir. Mas eu não estou com sono. Você precisa dormir para ficar forte de novo. Não quero! Dorme, filinho. Papai está cansado também. Mamãe já está dormindo. Amanhã o médico vem aqui e vai dizer se você já pode levantar e voltar a brincar na rua como os outros meninos, e mais tarde a tia Eulália, amiga do papai e da mamãe vem aqui com a Fauna e vamos jantar pato. Dorme que o tempo passa mais rápido. Vai ser um longo dia... Ta bom então (bocejo). Boa noite, papai... Amanhã me conta mais da história? Prometo. Vamos descobrir como Tudor conseguiu escapar da floresta terrível! Agora durma (beijinho). Prometo que quando estiver bom vamos acampar e jogar bete até o dia raiar.
Então o pequeno Zéfiro, sentindo o pulmão pesado como sempre e o coração leve como nunca, adormeceu com sua pedra verde da sorte entre os dedos. Mas sem que ele percebesse, todas as árvores ao seu redor também mudaram de lugar, e o mundo se transformou. Quando ele abriu os olhos, estava em uma terra distante e feliz, cheia de aventura, com outros meninos como ele, e até a pequena Bô-bô estava ao seu lado. Lá eles brincavam, se aventuravam e corriam por fontes e abismos. Todos os dias eram felizes como aniversários e ele nunca mais crescera.
quarta-feira, 29 de julho de 2009
Querida Louanne,
Entoar minhas tristíssimas cantigas!
Por que me prendes? Solta-me covarde!
Deus me deu por gaiola a imensidade:
Não me roubes a minha liberdade...
Quero voar! voar!...
Escrevo-lhe esta carta porque esta manhã me olhei no espelho do banheiro e vi, no reflexo, no criado mudo de minha mãe, um livro cuja personagem principal leva seu nome. É um livro de magia e realidade destes que nos inspiram a agir mais impulsivamente, sem levar em conta paradigmas sociais que tanto nos emperram. Um livro que te segura pelos braços, olha bem dentro de seus olhos e diz: “um copo é só um copo”. Essa é uma carta de amor e amizade. Quando vi o livro, ele me remeteu à história, quando me lembrei da história, já nebulosa em minha mente febril, me lembrei da encantadora protagonista, e quando pensei nela, associei os nomes, e pensei em suas mentiras Louanne, em suas agraciadas mentiras que me fazem sonhar até hoje. Diante do espelho meu rosto se partiu. Não porque o vidro estivesse quebrado ou trincasse em resposta as meus sentimentos. Meu rosto se partiu. Meus olhos choraram e meus lábios sorriram. Foi isso que aconteceu. Ajustei a gravata. Me disfarço bem de “cidadão”. Seu nome e sorriso palpitaram em meu peito. Continuei simulando uma vida como faço todos os dias. Você não está em Brasília, está longe, casada, talvez feliz. Não sei se você simula uma vida também, mas não duvidaria disso. No entanto sou obrigado a dizer que nossas velhas mentiras eram bem mais reais que a vida que levo hoje. Isso não é exatamente triste. Apesar das falsidades temos momentos de felicidade por aqui. De todos que conheci levei algum sonho comigo. Ir à Lua, ir à Roma, fazer a cama na varanda, voltar para a França, pilotar um avião, pilotar um carro de Fórmula 1, fazer cinema, virar ator, aprender violino, satisfazer uma paixão arrebatadora, voar de asa-delta, pular de pára-quedas, dar a volta ao mundo, ter um amor impossível, passear de submarino e até fazer amor em Chernobyl... Milhares de coisas que vivem como ecos em meu ser, e que, como um mosaico, me ajudam a compor meus próprios sonhos. Afinal, sonhos são feitos de sonhos e só assim eles podem se tornar reais um dia. Só você é que nunca me contou o que sonhava, e me obrigou a sonhar que sonhava seu sonho para compor o meu. Cativo estive todos esses anos desse misterioso sonho que sonho que sonhas quando sonho, como o pássaro de Olavo Bilac. Quero voar. Quando partiu você me disse que eu estava atrasado em concretizar meus sonhos. Estava certa, Louanne. Desde então, cada verdade, cada mentira, cada manhã, cada gota de suor, por mais avessa que possa parecer às idéias com que sonho, são todos voltados unicamente para essas idéias. Se fosse morrer agora você gostaria de estar aonde? Me lembro que me perguntou isso. Devolvo a questão. Hoje sei que a resposta deveria ser sempre “aqui”. Qualquer resposta contrária nos permite levar a crer que o inquirido é categoricamente infeliz. Quero ao cair da tarde cantar tristíssimas cantigas. Te entreguei meus sonhos. Você, ao menos você, levou meus sonhos. Minha Louanne sei que estamos distantes em espaço e sentimentos hoje, mas te convoco em meu coração. Vamos viver o mito. Mais que morrer, viver por uma idéia, por um sonho, seja o sonho que for. Tens coragem? Será que hoje sou eu quem dança e sorri, e que você deixou-se esfriar pelas convenções? O mundo esta mudando. Está na economia, na política, na ética, na ciência, na religião, na filosofia... Não quero ter meus pés presos no concreto. A maré está subindo. Está subindo e busco avidamente por um conhecimento, um segredo Louanne. Um segredo que é o ato de ter teus lábios sussurrando em meus ouvidos, ou de alcançar o topo de uma montanha no fim da tarde. Um vídeo rápido sobre coisas ternas, simples e desconexas, uma música desafinada tocada por uma harpa, uma verdade que não está na razão e não está na irracionalidade, as batidas do coração, um sapo, um girino, uma árvore, uma estação do ano. Não sei teu endereço. Quando me abandonaste pela primeira vez escrevi um texto que nunca te mostrei, “À Louanne”. Nele eu saia pelo mundo buscando por você, e deixava um recado para que me esperasse se você voltasse antes de mim. Agora saio em busca novamente. Não há linha reta, não há alguém, apenas um sonho indizível perdido em um mundo exponencial. Louanne, você está dentro de mim.
Do sempre, sempre seu, Edgar.
quinta-feira, 23 de julho de 2009
Perfis Indispensáveis (Garota Índie)
“It must be the colors” Ola! Meu nome é Selene, igual ao da deusa grega, meus avós paternos eram japoneses, meu pai é arquiteto, minha mãe é filha de brasileiros mesmo, tenho 17 anos, peso 50 kg e sou Áries com ascendente Virgem e Lua em Aquário. “And the kids” Me ligo nessas coisas de horóscopo, astrologia e tal, gosto de astronomia também, adoro tocar violão, ir ao cinema ver filmes de romance e comer doce. Tenho 1,5 metros, sou espevitada, brincalhona, gosto de dançar, não tenho medo de cair no chão, minha voz e minha risada são engraçadas e me divirto pra caramba todos os dias! “That keep me alive” Bebo um pouco de vez em quando, mas só com amigos, não fumo, não curto drogas, não gosto de boates, não gosto de som muito alto, a não ser que seja Cat Power, não gosto de tirar notas baixas, gosto de explicar física e matemática e detesto ser taxada de CdF. “'Cause the music is boring me to death” Detesto celular, detesto quando o celular toca, detesto, detesto e detesto. “It must just be the colors” Minha mãe é taguatinguense, artista plástica, filha de pioneiros que vieram para o Planalto Central construir Brasília. “And the kids that keep me alive” Me amarro muito na história da minha família porque pra todo lado tem um rabo, uma ponta de fio de novelo que posso ir desenrolando. “'Cause I wanna go ride away” Só vi meu avô paterno uma vez e minha avó já tinha morrido nessa época. “To a January night” Eu era muito nova. Não me lembro. “Built a shack with an old friend” Me lembro que ele se chamava Takeshi e era agricultor e cultivava morangos na área rural de Brazlândia (lembro dele quando ouço aquela dos Beatles – a maior banda de todos os tempos). “He was someone I could learn from” Lá tem muitos japoneses. “Someone I could become” Meu pai não manteve o contato com eles. “Will you meet me down” Na verdade somos muito ocidentalizados, mas ele conhece a história da família todinha e tem gente que foi até samurai (iá!). Meus avós maternos vieram do ceará. Também não conheci minha avó, mas meu avó era um homem forte, trabalhador, paciente e com um sorriso sereno no rosto. “On a sandy beach” Morreu quando eu tinha 11 e demorei muito para entender. Foi o primeiro ente querido que perdi (digamos assim, conscientemente). “We can roll up our jeans” Tem fotos com Juscelino, sete filhos, tios legais, todos homens exceto minha mommy, primos gatos, foi neles que aprendi a beijar (Yes!), sou bochechuda, tenho olhos puxados (como era de se esperar), cabelo preto com mechas vermelhas na frente (não, não me arrependo de ser poser), e aprendi a viajar pra longe, curtir a cachoeira e transar tudo de uma só vez com meu urso amarelo que é meu primeiro namorado mesmo. “So the tide won't get us below the knees” Já beijei outros caras do ensino médio e espatifei meu coração mole no primeiro ano. “Yellow hair” O nojento é que coisas moles não quebram, então ficam cheias de sangue e amassadas, igual a um gatinho atropelado por um caminhão. “You are a funny bear” Se fosse duro, eu varria e jogava fora. Me amarro em Simpsons. “Yellow hair” Tem uma cena que a garota arranca o coração do Bart e joga na lixeira e diz: “você não precisa mais disso”. Ri horrores. “You are such a funny bear” Tenho um gato chamado Marco Antônio, me visto de um jeito que eu goste, e não me preocupo muito em ser brega ou cafona, mas não uso camisetas com mensagens rock’n roll (de poser já basta as mechas). “Slender fingers" Quem não gosta de Raul? Eu gosto (e de Velhas Virgens também). “Would hold me slender limbs would hold me” Adoro roxo, adoro preto, adoro vermelho, adoro pedrinhas coloridas e artesanatos bacanas e quero fazer sociologia, ou antropologia, ou música, ou artes plásticas, ou letras, acho. “And you could say my name” Meu urso amarelo é grande, joga basquete, tem olhar engraçado, fala desajeitado e me carrega no colo toda vez que me encontra. “Like you knew my name” Não tenho medo. Na minha primeira vez estávamos acampados em um lugar chamado Macaquinho, na Chapada dos Veadeiros. Era noite, bebemos vinho, eu estava no início da menstruação, ficamos loucos ele subiu em cima de mim, me apertou no colchonete, me deixei levar, senti um pouco de dor e depois delirei e fui até as estrelas, onde haviam vários anjinhos sorridentes debruçados em nuvens que eram como janelas do paraíso (igual ao Homer quando dorme no volante – isso foi uma analogia ruim). “I could stay here” Sei que somos todos burros, não sabemos de nada e ainda vamos sofrer um bocado. “Become someone different” Eu vou, tu vais, ele vai, nós vamos, etc e etc... Não posso fazer muito a respeito. No geral me resigno e sou feliz. “I could stay here” Mas ler jornal as vezes me chateia muito (na internet, no papel ou na TV, tanto faz). “Become someone better” Fui presidente do comitê infantil taguatinguense de ajuda às vítimas do tsunami (chique!) e participei de três ONG’s com minha mãe, duas ambientais e uma contra a pobreza no Brasil e no mundo (naverdade não fiz muita coisa, só participei mesmo). “It's so hard to go in the city” Não tenho peitões americanos, bundinha de verão, pernas de Claudia Raia. “'Cause you wanna say hello to everybody” Não se iluda com as letras gentis e generosas. “It's so hard to go into the city” Sou pequenininha, feia, mas adoro depilar meus cambitos. Dei aula de geografia para crianças carentes e aprendi artes circenses com a molecada (foi meio que uma troca). “'Cause you wanna say hey I love you to everybody” Sei que toda a vida legal de classe média que levo é um frágil paradigma (adoro essa palavra), estou terminando de escrever uma poesia e vou me encontrar com o Ted-Bear daqui a pouco. “When we were teenagers we wanted to be the sky” Já mencionei que nos conhecemos de verdade no inglês? “Now all we wanna do is go to red places” Éramos da mesma turma na educação física e no inglês, mas eu sou uma negação em esportes e ele uma negação em inglês, e aí nos ajudamos mutuamente, descobrimos músicas e um monte de coisas em comum e incomuns, e pimba(!), era uma vez na América. “And try to stay outta hell” Vamos tocar violão, caminhar na Esplanada e dar uns amassos na Ermida Dom Bosco. “It must be the colors” Se você não é do DF, não faz idéia do que está perdendo. “And the kids” O fds promete e por hoje é só, pessoal! “That keep me alive” Beijos... “'Cause the music is boring me to death”
PS: Não esquecer de levar o gravador e o violão! “it must just be the colors”
(…) “And it must just be the kids”
“That keep me alive on this January night.”
“Yellow hair”
“You are a funny bear”
“Yellow hair”
“You are such a funny bear” (!)
Selene Arruda Myura =P
*Colors And The Kids (Cat Power)
terça-feira, 16 de junho de 2009
Sobre Brasília: Haikai
Ela me pediu para não ser mais um, para fugir do comum. Falei sobre a cidade, depois de abriu...
1º
Ipê de Brasília
Vem com as chuvas turvas
Alimentando minha fantasia
2º
Minhas linhas tortas
Visão em decomposição
Brasília, ilha das marmotas
3º
Não faço por querer
Torto, nasci obtuso, morto
Sou a catedral do desentender
4º
Janela aberta
Luz do dia, água na bacia
Juriti incerta
5º
Sonha feiticeira louca
Céu, Sol, Lua, dormi na rua
Voei no céu da sua boca
6º
Paris, cidade a iluminar
Rio Senna, fazendo cena
Brasília, lago Paranoá
sexta-feira, 5 de junho de 2009
Brasília é um labirinto
sexta-feira, 29 de maio de 2009
O Golem
(Luiz Calcagno)
Criatura de músculos e vísceras,
Obra bruta dos quatro elementos,
Encantadora mestra de feras,
Chama das idéias e nascimentos.
Engenharia alquímica minha,
Produto do debate divino,
Ladrão de minha paixão e sina
Burro dominador de meu tino.
Leva minh'alma em tuas garras torpes.
Toma pra ti meu corpo alvo e puro.
Soldado faminto e algoz da forca.
Amo-te e odeio no presente e no futuro
Mas quando me vejo sinto tua força
Mudo e sou tu - eu vertido em ouro puro.
quarta-feira, 29 de abril de 2009
Boemia, justiça e Blogosfera no Poder
Se já não existirem mais blogues, não haverá mais BLOGOSFERA NO PODER, mas a energia que nos une pode continuar lá, se acreditarmos.
Este blogue criado em março de 2003, já teve outro endereço, outro templete, outros textos que foram sumariamente retirados por ânsias e animosidades, já teve, inclusive, outras três redes de amigos blogueiros antes dessa (mas nunca tão bem consolidada e séria para mim), completou seis anos este ano. Nunca teve textos como os que escrevo agora. É um laboratório literário pessoal, e as experiências avançaram com minhas infinitas leituras e filmes que nunca chegarão ao fim. Na cabe colocar uma lista referências. Seria pedante demais. Mas cabe dizer que fui afrontado por “adultos” por diversas vezes, por que deveria ter lido isto ou aquilo antes de me dar ao trabalho de escrever tais e tais coisas, e que me arrisco demais por terrenos pantanosos que desconheço. Querem saber, eu rio da cara do perigo. Além do mais, posso não ter lido toda a obra de Machado, nem O Capital, nem outras tantas obras importantes que quiçá, virei a ler, mas retorno a pergunta aos sábios. Me digam vocês, se já leram as poucas e belas poesias de Yokohare, ou ficaram a admirar suas fotografias? Já leram as fascinantes histórias de Blindado, que ganhou vida pelo imaginário de botas pretas de Afobório? Já se deram ao trabalho de refletir sobre os manifestos quase diários de Jana Lauxen, ou deram atenção aos textos líricos de Flávia Brito? Como assim, nunca ouviram falar no Coleira do Cão, de Fabrício Romano, em Arlquim, ou nas críticas do Cinema e Bobagens, de Beto Canales, ou nas procelas e digressões de Luiz Gonzaga B. Jr.? As poesias e prosas de Anna Karla, do do Pequena Cidade: Âmbar, já leram? Não? Que absurdo! Sabem o que é isso? BLOGOSFERA NO PODER, meus senhores e minhas senhoras.
Este ano lanço meu primeiro conto, publicado em uma antologia conhecida como Assassinos S/A, da editora Multifoco. Progredi muito. É um resultado concreto. O primeiro de tantos outros, espero. Devo isso à minha querida Yoko (mais uma vez), que acreditou mais no que eu escrevo do que eu mesmo nos últimos dois anos, ao meu caro Denny, que foi o primeiro a se dar ao trabalho de ler textos meus e me enviar as correções de bom grado, à Jana, primeira blogueira que conheci capaz de transformar pensamentos em realidade e levar à sério o que faz como escritora, uma inspiração, ao Cavanhas, que desde a primeira vez que comentei no seu blog me respondeu com carinho, e me recebeu, e trocamos experiências mútuas e extremamente construtivas, e a todos aqueles que estando ou não na minha lista de amigos (são muitos, me desculpem por não nomear um a um de vocês como merecem), se linkaram mutuamente para formar uma corrente de escritores que varre o país. Me envolvi com projetos muito legais, como o E-blog e o Avant Garde. O que fazemos é importante. Talvez mais que possamos imaginar. Sempre digo, e não canso de me repetir, continuemos caminhando, passo a passo, consolidando cada conquista, em nome do nosso constante criar.
Por todos os poetas que vieram e que virão,
quarta-feira, 8 de abril de 2009
Ricos de tudo...
Um Buda magro e contente sentou-se junto aos neandertais em volta da fogueira. Eram homenzinhos baixos e loiros, com olhos claros como lagos. Alguns eram até broncos e altos, mas não passavam de 1,80 m. As mulheres eram belas e tinham cabelos desgrenhados e cabeças redondas. Cozinhavam, celebravam as estações, faziam adornos para a casa e para os Elementos da Fertilidade e tinham filhos. Faziam sexo e necessidades quando sentiam vontade, onde estivessem, pura e simplesmente, e viviam no verdadeiro Éden e na Arcádia, uma espécie de Devachan na Terra, correndo pelos descampados, sem pudores, caçando e vagando por entre pradarias, vestidos com peles de animais, flores e cipós. Como era bom fazer parte da estirpe dos Homo neanderthalensis.
O Buda esguio e risonho, um Ser de luz que estava e não estava ali ao mesmo tempo, aproximou-se atraído pelo olor do assado, sentou-se bem recebido como um Espírito da Floresta, e deliciou-se do gordo javali que os caçadores devoravam famintos. A mais nova do grupo, Bikha, estava grávida. Devia ter uns 16 anos. Mudou de lugar atraída e sentou-se feliz ao lado do Tathagata, para vê-lo saborear um belo pedaço de pernil de fera. O pai de Bikha já queria fazer um colar-ritual para seu genro, com os dentes densos e resistentes do gordo animal.
O Buda que Nada Dizia, da época em que os homens eram sábios e tolos, gostava de se divertir com as crianças bípedes em volta das fogueiras nas noites de lua nova, quando não havia também estrelas no céu, e os pinheiros e a chama que espanta os mosquitos iriam compor a casa-mundo das pequenas tribos. Eram oito ali, como o Nobre Caminho Óctuplo, mas faziam parte de uma tribo maior, e haviam se perdido a alguns dias e estavam bem felizes também. Todas as fêmeas estavam grávidas. Eram três mulheres e cinco homens. Deles nasceriam quatro monstrinhos brincalhões, meninos-lobo em número igual ao das Quatro Nobres Verdades.
Ainda havia muitos pelo mundo, mas já eram os últimos da espécie. Bikha teria gêmeos. Seria um parto bom e tranqüilo para os dois pequenos guerreiros-urso. Consegue imaginar como eles passeavam pelos terrenos outrora férteis onde hoje construímos shoppings e banheiros? Caçando como fantasmas sombrios pelos largos estacionamentos iluminados pela luz dos postes, ou fazendo fogueiras finas em vastas madeireiras e caminhando em free-shops com suas botas de couro de búfalo e cabelos longos e sujos? Como se nós é que fôssemos os fantasmas? O Buda ficava triste e feliz com a idéia de que todo aquele povo alegre ia dar lugar a outros homens na terra, e ninguém jamais saberia o que aconteceu de verdade. Como seria bom encontrá-los caçando nas florestas americanas nos dias de hoje, com suas religiões, lendas e mitos, e assando felizes suas caças tal qual este grupo, na entrada da bota itálica, às margens do São Francisco ou nas praias da Normandia.
Teggo, marido de Bikha, sentia-se feliz também. Olhava a amada com fascínio e encarava os olhos do monge que saboreava a carne assada. Ele correu, correu, correu e parou em silêncio. Nakhi-Rein estava em sua frente, e ao ver o genro se deter, jogou-se no chão de súbito e cobriu a cabeça e fechou os olhos com o nariz na terra, rezando à Grande Mãe. Ao ver aquilo, as famílias dispersas, como se fossem parte de um corpo só, e o eram, se detiveram sem respirar, olhando pelos olhos do mais forte. O javali ergueu a cabeça com as presas grandes e viris, alertado pelo repentino silêncio, e antes que pudesse mover os fortes músculos da pata em direção a um esconderijo seguro, antes sequer de poder cogitar essa possibilidade, foi alvejado por uma longa e fina flecha, e por outra logo em seguida, e agonizou com os olhos arregalados e a respiração ofegante, e foi cortado, rasgado, escalpelado, empalado e assado na própria gordura, salgado com cinzas, dividido com a pele crocante e a carne branca, e serviu de alimento suculento para aquele que ouvia e compreendia a Voz do Silêncio, e havia entendido a real natureza, ameaçadora e escorregadia, do Dharana.
O avatar tocou a mão gordinha e de dedos pequeninos e calejados de Bikha, e olhou feliz para Teggo e Nakhi-Rein, e todos se calaram. Então o Buda pegou um punhado de terra com a outra mão cuspiu nele e amacetou entre os dedos, e colocou sobre a palma alva da jovem sorridente, que tinha dentes brancos e fortes. Todos se calaram regozijando-se. Poucos entenderam realmente aquele gesto do Espírito da Floresta. O admirável Nakhi-Rein, conhecedor das plantas e dos murmúrios da montanha, amante das pedras e do rio, viúvo feliz que viu sua mulher queimar em uma pira sagrada repleta de cabeças de cervo que foram devorados em uma grande festa, pintor sacerdote de paredes de caverna, senhor da caça, sussurrou um pequeno verso que não estava diretamente ligado ao gesto sábio do Bikku no ouvido de Teggo, cujo olhar direcionado à noiva a fez também compreender: lama vale mais que palavras. E o Bodhisatwa foi embora contente e aceso no meio da noite, enquanto o grupo se amontoava em sonhos como um bando de leões, reunidos ao redor do fogo sagrado, onirizando que dançavam com o Cervo Rei, e pescavam com o Grande Urso Comedor de Salmões, e viviam em abundância com o Provedor de Girinos, e eram felizes com toda a panacéia de Deuses que existiam naquele obscuro período da história do Mundo, ao redor da Mãe, e que sagrados eram.
terça-feira, 31 de março de 2009
Betty punk e o atirador de elite!
Nada mais normal. Sexta-feira, abre os olhos, 6h30, água gelada no rosto, pasta de dente, escova de dente, banho gelado, lava o cabelo azul, sai pelada do chuveiro, enrola a toalha na cabeça, enxuga o corpo, olha a barriga e os peitos no espelho, veste calça colan preta, veste a meia preta, veste um jeans curtíssimo, bota o coturno, veste o sutiã da Betty Boop, bota top preto, veste casaco de capuz, pega CD-player, coloca U2 para tocar, pega pilha extra, enfia na mochila, coloca fone de ouvido, pega caderno, guarda-chuva, deixa a mochila no sofá, tranca a porta, ascende a luz do corredor, abre a porta, põe ração para o gato, toma um copo de leite, sai, tranca a porta, abre novamente, pega a mochila, tranca novamente, chama o elevador, acende a luz do corredor, volta e confere se a porta está trancada, pega o elevador, desce com o vizinho desagradável que fica olhando sua bunda, sai do elevador, sai pela portaria, caminha pela rua, pelos prédios, para na parada, no meio do temporal, absolutamente sozinha, cheia de expectativas e pesares...
O ônibus atrasa, o ônibus chega, passa da solidão para o excesso de companhias, o veículo está lotado, paga passagem, responde com mal criação a piada do cobrador, se espreme no meio das pessoas, vai para a parte da frente do carro, alguém passa a mão na sua bunda, tenta achar quem é, não vale a pena, continua se espremendo, ouve uma cantada suja, segue em frente, para na escada, tira um livro do bolso, se escora na barra, começa a ler, dá passagem para quem vai sair, volta a ler, vira a página, dá passagem para quem vai sair, volta a ler, segura forte porque o motorista corre e freia, volta a ler, vira a página, o olho dói, põe os óculos, volta a ler, lê por mais tempo, vira a página, o motorista chacoalha o carro, fica nervosa, volta a ler, o ônibus para, dá passagem para outros passageiros, volta a ler, dá sinal e desce do ônibus...
Corre até a marquise, procura a chave na bolsa, carro joga água e molha tudo, procura a chave na bolsa, acha o molho de chaves, passa uma moto, molha mais um pouco, acha a chave, a chuva aumenta, abre a porta da loja, levanta a porta da loja, trava a porta da loja, acende a luz da loja, tira o casaco, bota The Doors para tocar, acende as luzes do mostruário de vinis, olha no relógio, assina a folha de ponto, pega o caderno, estuda o material da faculdade, atende um cliente que não quer nada, volta a estudar, atende outro cliente que não quer nada, volta a estudar, não atende o próximo cliente, ele quer comprar um disco, vende o disco, ele quer um CD, vende o CD, ele quer um filme, vende o filme, ele fica com má impressão porque não foi atendido logo, para de chover, faz sol, ela volta a estudar, não aparece mais ninguém por muito tempo, aparece alguém, são 14h, ela assina a folha de ponto, seu amigo chega, ela se despede, vai para a parada, está cheia, o ônibus está vazio, segue para a universidade...
O rádio manda desarmar o posto de observação. 15h. Ele desmunicia a arma, retira a luneta, dobra o que é de dobrar, desarma o que é de desarmar, guarda na maleta, desmonta o tripé, guarda na maleta, pensa na manhã, guarda o binóculo, planeja a noite, enfia todo o material em uma sacola preta maior, lembra que matou um homem na última semana, não sente remorso, ajeita a boina, pensa na família do homem que morreu, sente pena deles, desce da torre da igreja, entra no furgão, balança dentro do carro, xinga o companheiro, ouve xingamentos, ri, provoca o motorista, ri mais, lembra do caso do traficante, ri mais, olha no relógio, fala sobre o livro que está lendo, fala sobre Esparta, fala sobre treinamentos militares, vai para a academia, fala de filmes, fala de mulheres, fala de dinheiro, fala de aluguel, fala de motos, vai para o banho...
Falta alguma coisa, sente um vazio, se enxuga, outros caras no vestuário fazem brincadeiras com a toalha, guarda tudo no armário, vê que esqueceu calça e tênis, veste a calça da polícia, tira a mochila do armário, enfia tudo na mochila, lembra que vai folgar quatro dias, sente alívio, pensa em viagem, pensa em fazer alguma coisa, pensa no governo, pensa nas pessoas, vai para a parada, o ônibus não demora, pega o ônibus, está cheio, mas tem lugar, vai sentado lendo, para na universidade,o ônibus quebra no caminho, pega outro ônibus, vai o resto do caminho em pé, um bebê chora no colo da mãe, fica olhando os olhos do bebê, lembra do filho mais novo de seu pai, dá sinal para o ônibus, o motorista não para, espera pacientemente, dá sinal novamente na parada seguinte, o motorista para, desce, vai caminhando até a universidade, 19h30...
Pensa que o dia acabou, pensa que a vida parece pobre, pensa que o sistema sacaneia todo mundo, pensa nos livros que leu, pensa no capitão fazendo piadas, acha graça, lembra da avó, pensa na tatuagem que quer fazer, pensa no computador que encomendou, pensa no torneio de arco e flecha, atende o celular, fala com o amigo, um carro passa, não ouve nada, a ligação cai, o amigo liga de volta, volta a falar com o amigo, descobre que o amigo vai ser pai, fala sobre a polícia, fala sobre o Bope, fala sobre planos para o fim de semana, fala sobre a garota punk, fala sobre a falta de sentido na vida, fala sobre a busca de um sentido, o amigo lembra que estão no celular, desliga o celular, um estranho se aproxima, encara o estranho, o estranho se afasta, pega um atalho, chega na universidade, senta no CA de veterinária, olha no relógio, abre o livro, começa a ler, alunos passam, os espartanos recebem Alcebíades, a guerra muda de lado, ele olha no relógio, não consegue se concentrar, volta a se concentrar ela para diante dele...
Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, 20h12, eles se beijam longamente, ela fica mole e feliz, ele fica duro e contente, dão as mãos, alunos passam por eles, caminham, contam o tempo que ficaram sem se ver, ele conta o que fez durante a semana, pessoas passam por eles, fala de armas, de como Alcebíades é importante na história da Grécia, ela fala sobre Tróia, conta dos animais que dissecou, dos filmes e discos que vendeu, professor, professora, aluno, aluno, servente, planejam o final de semana, ela não conseguiu folga segunda e terça, param, se beijam, ele a espreme contra a parede, ela fica feliz, voltam a caminhar, vão para a parada, o ônibus demora, ele fala de como ficou na torre da igreja, ela está hipnotizada, ele fica hipnotizado pela hipnotização dela, se beijam, o ônibus chega, está vazio, resolvem parar no bar, ele liga novamente para o amigo, ele vai para lá de carro com a noiva, começam a comer e a beber, falam sobre bebês e noite a dentro...
Homens brigam no bar, 22h45, ele pede a conta, o amigo sai com a noiva, ela se levanta, ele se levanta, um homem voa em cima dela, ele empurra o homem em cima do outro que estava brigando, os amigos do que voou partem para cima do atirador, ele bate em um, bate em dois, bate em três, apanha de quatro, o amigo entra, ela puxa ele para fora, fogem para o carro do amigo, a noiva fica nervosa e passa mal, vão para o hospital, ele ganha pontos na sobrancelha, o amigo imobiliza o dedo, a noiva faz ecografia, ela fica na sala de espera, está chateada, ele volta primeiro, eles discutem em voz baixa, tem uma mulher que apanhou do marido, um velho com dor nos rins, paramédicos passam com um homem gordo na maca, correm muito, eles conversam mais, ele pede desculpas, ela vira o rosto, ele beija a orelha dela, passa um homem sangrando, passa uma garota segurando o braço, uma mãe com um menino no colo, ela o perdoa, o amigo e a noiva saem do consultório, ele dá um dinheiro para a gasolina, eles seguem para a casa dela...
Eles param no semáforo, travestis acenam, eles seguem em frente, um carro de vidro fumê os persegue por um tempo e depois vai embora, uma viatura da polícia para o amigo, eles mostram que são da polícia, o policial faz vistoria no veículo, as meninas ficam nervosas, eles passam em uma lanchonete, fazem um lanche, uma criança pede dinheiro, a noiva paga um sanduíche, um bêbado pede dinheiro, ele pede para que ele saia, um mendigo pede comida, o amigo se irrita com o jeito do homem, eles se desentendem, ele olha para ela e eles olham para a noiva, ele se levanta e apazigua, pede para o mendigo ir embora, o garçom manda o mendigo embora, 0h57, eles pagam a conta, entram no carro, o amigo dirige a toda velocidade, ouvem Bom Jovi e cantam em voz alta, os namorados se beijam no banco de trás, os noivos se divertem e a grávida passa a mão no pênis do noivo enquanto ele dirige, param em frente ao prédio dela, eles descem, o amigo e a noiva se despedem e vão embora, eles acham que a noite foi boa, entram na portaria, entram no elevador...
Alcebíades e os espartanos e o CD-player com o U2 ficaram no sofá da sala-cozinha, o atirador e a menina punk foram para o quarto, estavam cansados, mas acordados, se beijaram, ele tirou a blusa, ela tirou o casaco, ele soltou o cinto, ela tirou o top, se abraçaram e se beijaram, ele tirou o sutiã dela, ela tirou o jeans e a calça colan, rolaram pelo chão, subiram na cama, rolaram na cama, se beijara, se preencheram, gemeram, sussurraram, trocaram de posição, suaram, beijaram, beijaram, lamberam, beijaram, falaram alto, sentiram prazer, rolaram, caíram da cama, rolaram. Continuaram, ele dominou, ela dominou, ele sorriu, ela foi às nuvens, se amaram, ad infinitum, a noite inteira, amém...
terça-feira, 24 de março de 2009
O Caminho das Folhas - Fotografias (Cap. 4)
O cheiro de químicos inebriava o laboratório. O local era dotado de uma atmosfera escura e misteriosa. Havia um “q” de tranqüilidade em tudo. Na escuridão, passos ligeiros e ágeis e mãos de dedos finos tateavam e dependuravam fotos em um varal. Nem uma réstia da usual luz vermelha iluminava a sala. Tudo era perfeitamente organizado, meio a moda antiga. Além do silêncio, apenas o murmurar doce de uma canção. Uma mulher trabalhava. Jaleco branco sobre a roupa. Ilka revelava os últimos trabalhos de Tom, sempre encantada, com a ansiedade aflita de querer ver primeiro as fotografias daquele artista. Era um grande capricho. Ele não a conhecia. Não sabia que era ela quem cuidava de suas revelações. Mas a jovem, dona do Photo, sabia muito bem quem eram seus clientes, e como tratar as fotos de cada um segundo seu tom de voz e o tempo de exposição do material, em uma relação engraçada e difícil de compreender. Repentinamente as luzes vermelhas da salinha se acenderam.
- Laila?
- Como você sempre acerta? Eu mudei o perfume, vim de tênis para não fazer barulho e tudo.
- Eu reparei também. O que foi?
- Seu cabelo está lindo. Não sei como faz essas coisas tão simples e tão bonitas. O Takeshi concluiu as fotos coloridas...
- Veja Laila, olhe como estão ficando... Não são lindas?
- Nossa! São lindas mesmo. Ele surpreende a cada trabalho. Como consegue ver o mundo desse jeito? São detalhes que nunca percebemos. Uma ferrugem no portão, o olho do sapo, cada coisa... Sei lá.
- Que inveja, amiga. Se eu pudesse ao menos vê-las. Mas sei que são boas. Posso sentir. Elas estão repletas de arte, e até as moléculas do papel e do químico sentem isso. É como se o conjunto soubesse o que está compondo, e eu como regente, pudesse escutar a música que a foto exala. É tudo uma questão direta de conversão de energia. Já li muito sobre ele, sabia?
- Do jeito que você fala, às vezes parece que você vê essas imagens, sabe? Pouca gente percebe essas relações que você faz com o mundo...
- Um trabalho de arte de verdade está sempre carregado de uma energia de beleza. Dá pra sentir, ouvir, cheirar, enfim... É quase como se eu pudesse escutar o que as imagens dizem, nesse caso. Eu senti isso quando vi a Venus de Botticelli. Tinha uns 10 anos. Foi quando eu entendi. Meu velho me colocou parada diante do quadro, e depois de outro quadro, e senti a diferença. Foi incrível. É como se saísse um vento diferente de cada obra, como se ela respirasse. Desde então passei a amar arte. Meu pai sempre achou estranho, mas me apoiou. Não é engraçado?
- Eu sei... Você já contou essa história mil e uma vezes. Eu adoro ouvir, mas não dá tempo agora. Então, as fotos coloridas também estão prontas? Posso ligar pra ele? Precisamos ver os outros clientes...
- Não. Vamos esperar essas ficarem prontas. Amanhã, quando abrir eu ligo, às 9h em ponto. Amanhã é dia treze, não é? Aí falo com ele. Aí você para de me encher com essa história de fale com ele, se aproxime, chegue junto, etc, etc..
- É, é treze. Paro de te encher o dia que você fizer ele te convidar pra sair com ele, e me contar como foi tudo depois.
- Ai, não vai ser nada. Você vai ver. Vai ser uma conversa morna, de trabalho. Até parece que ele vai me conhecer e me chamar pra sair, ou que eu vou chamá-lo para sair assim. Vamos nos falar por telefone e marcar um encontro no balcão, só se for. Ele deve ser super profissional. Você vai ver. Alô, alô, as fotos estão prontas, vou buscar, muito obrigado, obrigado o senhor, bla, bla, bla.
- Você passou o trabalho dele na frente de todos os outros mais uma vez. Vamos atrasar outros clientes por isso, sabia? A conversa vai ser morna, mas você vai receber ele depois, e eu vou mexer os meus pauzinhos. Já te falei que minha irmã é colega de uma amiga dele, uma publicitária. Alguém sempre conhece quem você procura em Brasília. Não deve ser difícil alcançá-lo.
- Ai, ele deve ser lindo como as fotografias dele. Fico imaginando como são os traços, como se fossem entalhados na madeira, só que suaves.
- Você e esse seu amor platônico.
- Não ria! Descreva-o mais uma vez. Eu sou sócia majoritária. Mando aqui.
- Por favor, tenho mais o que fazer.
- Não seja cruel.
- Tá bom. Ele tem cara de pastel molhado. É bochechudo, com barba, olhos castanho-claros, é muito objetivo no que fala e se veste igual a um cantor de folk.
- Mesmo com seu sarcasmo ele ainda parece maravilhoso. Como um cantor de folk se veste? Laila se retirou. A luz vermelha se apagou e toda a sala mergulhou em uma imensidão negra. A porta se fechou. Ilka mergulhou na introspecção do lugar e trabalhou sem se distrair. As imagens vivas de Thomas pareciam enxergar no escuro, como elementais da natureza, enquanto a jovem dançava na escuridão.
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
Dear Prudence
Com muito bom humor Prudência colocou o material da faculdade na mochila. Fazia muito calor na Europa naquele ano. Ela usava shorts jeans curtos, uma blusinha preta que mostrava o tribal no seu braço, um colar de penas que seu pai trouxera da Amazônia, e tênis grandes. Ela tinha olhos bem verdes, um cabelo loiro que vivia bagunçado, nariz pequeno, lábios rosados e angelicais, levemente tortos para a esquerda, não tinha muito queixo, tinha um rosto arredondado e a parte de cima da cabeça bem redonda, com orelhas grandes, mas proporcionais ao conjunto, era baixinha, tinha cerca de 1,5 metros, cuidadosa, sempre se depilava, coisa não muito comum entre as francesas, tinha a pele cor de pudim de pão, adorava a natureza, era meio bronca, mas muito feminina, mesmo na espalhafatosidade...
Juan, o garoto espanhol que fazia artes plásticas fotografou a menina de costas. O “clic” da máquina chamou a atenção de Prudência, que, conhecendo o afair, não se surpreendeu com a imagem colorida e estourada da Polaroid que surgiu diante de seus olhos antes mesmo de ver os buracos negros daquele homem a encará-la. Ele sorriu sem dizer nada. Ela também não disse nada, mas não sorriu. Ainda estavam repletos da noite anterior. Repletos deles mesmos, das estrelas, do telhado, da observação astronômica, das discussões astrológicas, dos embates filosóficos, dos esforços pelo livre pensamento, do sexo de quatro e de pé e com ele deitado sobre ela, e com ela sentada nele, dos orgasmos cansados e do êxtase que os levou a sonhos distantes um do outro, e das parcad duas horas de sono. As mãos dela suavam só de vê-lo, e ele não pensava mais em nada a não ser desenhá-la, descrevê-la, fotografá-la, como objeto de estudo de uma beleza rara e estranhamente mágica e distante que a menina com nome de música Beatle realmente tinha, e que, em geral mais a afastava das pessoas que as aproximava dela. Era mágica, coelho da cartola...
Juan tinha cabelos e olhos negros, era levemente estrábico, tinha um rosto afinalado, cerca de 1,75, de movimentos delicado, queixo comprido, orelhas pequenas, com barba por fazer, era magro mas forte, tinha um olhar fascinante, brilhoso, sempre perdido em pensamentos, com uma pele cor de neve e lábios finos e sorridentes, com dentes alinhados e fortes como os de um escravo. Com muito carinho ele abaixou a máquina para contemplar os lagos verdes que o encaravam. Vestia uma bermuda preta, sandália, tinha o pé todo tatuado de formas indígenas sioux norte-americanas, dedos longos, movimentos ágeis, pautados pelo Tai-chi-chuan, refinado, amante das coisas novas e do desconhecido. Gostava de tocar violão e ouvir sua “rareza” (como ele se referia a Prudência quando estavam sozinhos) tocar flauta, de viajar. Ela lhe roubou um beijo estalado e, ainda sem dizer nada, saiu andando...
Ele ainda tinha o gosto dela nos lábios. Os risos desmesurados e os gestos estabanados de menina-mulher que gemia na cobertura da pensão universitária. Ela ainda guardava no quadril aquela força que ele imprimira uma vez após a outra, até o esgotamento. Aquelas palavras doces e os passeios de dedos saborosos. Era apenas furor de paixão. Coisa que ia e vinha e que só, não tinha muito valor. Ainda cultivariam um amor, algo sólido e permanente, que seria aceso como uma pira olímpica, com a flecha efêmera que acabara de flamejar. Era só o nascimento, por isso era tão vanglorioso.
A imagem da jovem caminhando remeteu o rapaz à galáxia de Andrômeda. Ele quis ser Perseu, para ser herói, e astronauta, para viajar àquele corpo celeste, e viu os passos curtos da jovem, sem acompanhá-la, meio sem sentido, refletindo com uma estrutura de pensamento zen-budista, se deixando levar por afluentes naturais da reflexão, viu-a feita de barro, pensou que ela não era realmente Andrômeda, mas que a nível atômico era um ninho inteiro de galáxias, tão minúsculas que seus olhos jamais poderiam perceber, mas grandiosas, com explosões, supernovas e caminhos que, em macroproporções, foram alento para seu falo e sua língua de prazer na noite anterior, por exemplo.
Ela ouviu os passos do rapaz indo em sua direção. Queria ser devorada ali mesmo, mas mantinha a compostura. Era distinta. Sua língua molhava involuntáriamente seu lábio. Era um cacoete que tinha quando sentia tesão. Apressou o passo. Ele a alcançou. Caminhou ao seu lado. As costas das mãos um do outro se tocaram como que em segredo. Ela morreria antes dele. Eles não teriam filhos. Suas vidas simples fariam parte de um todo que contribui para que a humanidade passe um pouco melhor os longos séculos de Idade Média que chegaram. Um avião cruzou o céu. Lama vale mais que palavras. Buda é esterco seco. Ninguém pode dar valor à cabeça de um gato morto. Deus está mais próximo de nós que nossa jugular. Ele é o caminho, a verdade e a vida. Juan morreria sem saber que se casou com a última neandertal que pisou o planeta Terra...
sábado, 3 de janeiro de 2009
O Caminho das folhas - Despedida (Cap. 3)
Quanta gente. Não chora. Me abraça. Ninguém esperava por isso. Pobrezinha. Dizem que o lado direito ficou irreconhecível. A Rafa era demais. Não vai ser a mesma coisa sem ela. Como arranjava tanto tempo? Ela fazia tudo. Ainda dava pra matar aula e jogar Totó. Eram só os dois. Os pais já tinham morrido em um acidente de avião. Que tragédia. Ele ficou só. Aquele sorriso engraçado, grande. Por isso ele não quer ficar. Só vai fazer o discurso. É? É. Chegar, fazer o discurso e partir. Olha só quanta gente. Era uma menina feliz. São amigos da faculdade. Fica aqui. Vamos lá pra fora. Você vai se sentir melhor. Ela me disse que estava preparando. Lembra que ela fez o dinossauro de papel com cola e arame? Ficou igualzinho. Não sei como serão os dias sem ela. Quando o Claudio me ligou, não acreditei. Não fica assim. O Paulo saiu do coma, mas o Henrique ainda não. Não é hora de falar sobre isso. Meu deus, como dói. Vem cá, me abraça, isso. Ela é que estava dirigindo. O pneu traseiro caiu na vala e saiu, daí ela perdeu o controle. O Marcos que recebeu a notícia primeiro. Parece que a mãe dele é orientadora do João, e eles são muito amigos. Ele me ligou e saímos ligando pra todo mundo. Muito foda dar uma notícia dessas. Senta aqui. Toma um lenço. Lembra daquela dancinha? Ela e as meninas da monitoria que fizeram. Foi muito engraçado. Estranho, né, amanhã ela não vai estar mais lá. Voou em cima da manilha. Rafa, volta... Por quê? A mídia não dá um tempo. No enterro. Calma, João. Como está o Tom. Arrasado. Dê licença, amigo. É melhor que você vá embora. Já dissemos tudo que tínhamos que dizer. O irmão dela fará um discurso e deve acompanhar o cortejo. Se conheceram na escolinha de futebol, no final dos anos 80. É por isso que o caixão ficou fechado. Façam fotos de longe, se quiserem, mas, por favor, nada de entrevistas. Não, senhorita, ele não vai falar com ninguém. Alguém segura o João, ele está muito bravo. Vamos pra dentro. Me desculpe. É um momento difícil. Meus pêsames. Ela era minha melhor amiga... Entendo seu lado. Era tão feliz. Conhecia aquele caminho como ninguém. Por causa de um cinto de segurança. Mas ela não era de andar sem cinto. Será que ainda demora? O professor chegou. A coordenadora do curso também veio. A gente precisa ficar unidos. A Thalia está passando mal. Alguém tira ela daqui. As crianças do orfanato também vieram. Deve ser o velório mais cheio dos últimos meses. Senta aí. Toma um gole d’água. Ela não consegue nem falar. Era uma menina feliz. Dá o maior desespero. Merecia uma despedida feliz. Não ia querer ver todo mundo assim, tão baixo-astral. Mas é tão difícil. Tão difícil... Ela era a líder da trupe. O irmão não chegou até agora. Espero que não venha. Pobre Thomas. Tom é forte. Ele vai agüentar. Não sei não. Ela era tudo para ele. Sumaya, não fica assim. Senta aqui. Vamos sair e caminhar um pouco. Talvez fiquemos melhor. Ela ia gostar. Tudo lembra a Rafa. Que merda. Calma, Túlio. Vem comigo. Não fica aqui. Rafa, volta... Por quê? Mas é tão difícil. Tão difícil... A Cálida que falou. Namorada do João. Matheus! Vem pra cá. Fica com o pessoal da faculdade. Fizemos uma faixa. Pobrezinha. Dizem que o lado direito ficou irreconhecível. Meus pêsames. Vamos cantar aquela música, aquela que ela gostava. Quase morri, há menos de trinta e duas horas... Tão triste e tão lindo, todo mundo unido. O João saiu. Foi lá pra fora. Não está agüentando muito também. Eles eram muito amigos. Ele é ex-namorado dela. O Tom ficou puto na época, lembra? Mas eles eram muito amigos. Ele mesmo reconheceu que era só ciúmes. Pena não ter dado certo. Abaixa aqui. Senta, vai, você não está bem. O pneu traseiro caiu na vala e saiu, daí ela perdeu o controle. Os meninos ainda estão em coma. Não. Um saiu hoje de manhã. Que bom. Foi terrível. Não fica lembrando. A Cris não conseguiu falar uma palavra desde que chegou. Está ali, com o Chico. O pessoal cantando. Que bonito. São as pequenas coisas, que valem mais... Não cabe todo mundo na capela. Ela vai ficar no túmulo ao lado dos pais. Em um acidente de avião. Fala baixo. O Lucas. Era o ficante dela. Ele vinha em outro carro. Tinha se atrasado. Estava com mais um pessoal. Quando chegou no local do acidente a polícia já tinha chegado. Não dá pra acreditar. Queria arrancar isso de mim. Por que ela fez isso comigo. Eu sei. Eu sei. Oi João. Ola. Essa é minha namorada, Cálida. O Tom ainda não veio. A Márcia foi buscá-lo. Não. Arrasado. São os tios do Tom. Vieram de Rio Grande. Está bem cheio. Essa é Cálida. Muita tristeza... Dá pra sentir. Assinem o livro. Com licença, aqui que é a capela da Rafaela. Somos do Espaço Cultural, da 508. A turma de teatro. Alguém me ajuda aqui! A Thalia desmaiou. Lucas, vamos levar ela pra fora. É bom que você sai um pouco também. É um momento difícil. Meus pêsames. O João saiu. Foi lá pra fora. Mas é tão difícil. Tão difícil... Rafaela era uma bagunceira. Menina feliz. Professor, me dá um motivo. Me abraça, Glenda, me abraça. Também não sei. Tão lindo o pessoal cantando. Acho que ela deve estar sorrindo, olhando pra cá, dizendo que somos uns bobos. Para, vai. Que saudades. Só por hoje, eu não quero mais chorar... Ela ia me buscar em casa, mas eu tava com dor de cabeça. Que merda, cara. Não entendo por que. São as crianças do orfanato. O pessoal da faculdade. Uma galera da 508 Sul. Amigos de bloco. Muita gente veio e já até foi. Os jornalistas não dão uma folga. São uns urubus. Não dá pra aceitar, não dá. É tanta coisa. Aceitar, o que passou, o que virá... Porque que deus faz isso? Tenta ser forte pelas meninas. Aquele é o Jonas, o mais velho deles. Ela dava aula de matemática pra ele. Arruma o microfone. Já testou o som? Já está tudo testado. Ele vai falar e depois vamos para o cortejo. Vou ficar aqui fora mesmo. Não quero ver não. Era tão bonita. Que trágico. Tom é forte. Ele vai agüentar. Aquele sorriso dela vai ficar marcado em nossas almas. Ela era a líder da trupe. O irmão não chegou até agora. Espero que não venha. Vai ser muito sofrimento. Ele não precisa. Já perdeu a irmã, arrumou tudo isso. Não sei se seria melhor. Não sei. Está melhor. Ainda bem que o Wagner te segurou. Vou ficar sentada aqui. Fica também, Lucas. Ele está chegando. Vi o carro da Márcia. A Graziela está com eles. É o pessoal da agência de fotografia. Colegas de trabalho. Não quero enterrar ela. Não quero. Para. Por favor. Me abraça. Ainda dá pra ouvir o sorriso. Era uma risada tão gostosa. Fã de Legião, Paralamas, Cássia Eller... Por isso eles estão cantando. Fica aqui também, Túlio. Acho que só agora eu começo a perceber... João? Ele está chegando. Quer ajuda? Não. Vamos só acompanhar. Caramba, ele emagreceu! Se arriscando, a me perder assim, ao me explicar o que eu não quero ouvir... Nem parece que foi ontem. Meus pêsames, cara. Obrigado. Obrigado João. Relaxa cara. Que é isso? O pessoal da faculdade! Oi gente. Nossa, está cheio mesmo. Olha lá, é o Tom. O pessoal do orfanato. Obrigado por terem vindo. Estuda, viu garotão? Obrigado. Vai fazer falta, né? Se precisar, estamos aí. Obrigado. Tio! Calma, rapaz, calma... Tia... Vai, meu filho, estamos com você. Vou tentar. Não precisa, se não quiser. Com licença. Silêncio. Presta atenção, ele vai falar. Está ligado? Está. Bom dia. Obrigado por terem vindo. Meus tios cruzaram o País. Cada um venceu uma limitação para se despedir... De uma pessoa... Se despedir de uma pessoa tão especial. Estava pensando em uma música dos Beatles... Eu sei que é da época dos nossos pais, mas ela gostava muito. Sempre fomos ligados a eles. Essa música... Ela... Baby... Vou sentir tanta saudade de você... A casa está tão vazia. Dói muito. A Rafaela... A Rafa foi como um cometa... Um cometa... Um cometa... Ela... Me desculpem... A Rafa, ela sorria tanto. Era um anjo. Um anjo lindo. Quando fiquei sabendo... Acho que... Acho que... me desculpem. Não sei se consigo fazer isso... Vem comigo, cara. Não precisa. Me abraça. Vamos sair logo com o cortejo. É melhor. Obrigado.